Oliver Twist, o palavrão e o falso moralismo brasileiro do século XXI

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Oliver Twist, o palavrão e o falso moralismo brasileiro do século XXI

Como uma adaptação em HQ de Oliver Twist causou a revolta dos pais de uma escola paulistana?

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Quarta-feira, dia 02 de setembro de 2015, ficará marcado na história do Ensino de literatura como o dia em que foi publicado/expressado algo único na história brasileira: o falso moralismo.

Em matéria da Folha de São Paulo (veja aqui), pais de uma escola particular da capital paulista reclamam de um palavrão numa adaptação de Oliver Twist para quadrinhos. Entre as reclamações, estão o uso do termo prostituta e filho da puta. A reclamação dos pais é de que alunos de 6º ano, com 11 anos de idade em média, não deveriam ser expostos a tal linguajar, ainda mais numa escola, ainda mais numa escola particular, ainda mais numa escola particular.

Há algo de pobre nessa história.

Oliver Twist narra a vida do personagem de mesmo nome, menino órfão inglês do século XVIII, que é criado em meio à pobreza e a todo tipo de dificuldades que se possa imaginar a um menino sem pais na efervescência da galopante revolução industrial.

Nada disso indignou os pais: a miséria, a injustiça, os maus tratos infantis – numa das cenas onde o “palavrão” (ó, prostituta) aparece, é uma cena de mau trato. O que mexeu com a raiva desses adultos foi (risos) a palavra prostituta.

Há algo de pobre nessa história.

Uma criança de 11 anos comum, indiferente de classe social, é exposta a muitos níveis de linguagem e a muitos padrões diferenciados desta. Dentre esses (para surpresa desses pais) provavelmente está a palavra prostituta, o termo filho da puta (e o seu uso ofensivo a quem é direcionado, não a mãe desse). Nenhum filho(a) precisa ler em um livro para aprender um termo desses: lembrem, é a linguagem que faz a literatura, não o contrário. Achar que uma atitude dessas é proteger, ou qualquer termo que valha, seus filhos é, no mínimo, ridículo. A escolha da história, não acidental para quem lê a matéria da Folha, mostra que professores e pedagogos encontraram uma forma adequada para apresentar simultaneamente tema e linguagem contemporâneos fazendo uso de uma forma positiva, com quadrinhos.

Aqui chegamos a outro problema dos pais.

Muitos dos pais reclamam, além daquela palavra ofensiva (prostituta), do uso de histórias em quadrinhos e adaptações de obras consideradas clássicas o gênero. Um pai indignado pergunta “que tipo de valor e que tipo de leitor se quer criar ao substituir uma obra-prima da literatura inglesa por um gibi!” Na própria matéria, de forma tangencial, vemos a fala da pedagoga da escola, na qual ela explica que um leitor em formação se sente mais atraído por obras do gênero e que grandes clássicos adaptados para HQ podem ser uma boa entrada para esse panteão, além de firmar as bases do(a) jovem leitor(a).

15244523Além do purismo da língua (afinal, ninguém com educação, leitor, é capaz de conhecer ou compartilhar desse tipo de vulgarismo), vemos o purismo literário: pais que muito provavelmente não leram nem lerão Oliver Twist reclamando de HQs sem ao menos saber por quê. São leitores com valores ultrapassados, de um tempo em que gibi (termo depreciativo usado pelo revoltado pai) significava diversão de crianças, sem profundidade ou complexidade. Quadrinhos, no Brasil e no mundo, felizmente têm sido um ótimo instrumento de introdução aos grande clássicos da literatura com suas adaptações. Negar o valor do quadrinho ou das adaptações literárias ao gênero é afirmar uma visão limitada sobre o tema e um falso moralismo latente (Palavrões e quadrinhos na escola? Deve ser o fim dos tempos! No meu tempo que era bom…, dirão os saudosistas que não leram nem quadrinhos nem Oliver Twist).

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Que conclusão podemos tirar disso?

Vivemos numa sociedade/realidade líquida, dirá Bauman, mas talvez antes disso, no Brasil, mais precisamente no Brasil das classes mais abastadas, vive-se numa sociedade/realidade com um forte falso moralismo. Nela, não se admite parte da língua – e os palavrões fazem parte dela, quer queiram, quer não; não se admite desafiar o aluno, no sentido positivo da palavra, para que ele cresça enquanto ser humano ou em conhecimento, baseado em valores do século (risos) XIX, em purismos, em proteção excessiva aos filhos (afinal, pense, leitor, uma criança com acesso à internet, capaz de acessar boa parte dos sites de pornografia on-line, não pode conhecer o termo prostituta, pois esse é feio).

Precisamos acabar com o falso moralismo que cruza a nossa sociedade, a proteção excessiva e, principalmente, a arrogância. Fico satisfeito de saber que, mesmo com pais tão limitados, os professores e pedagogos da escola têm consciência e tino para conduzir e gerar uma situação enriquecedora no ensino de literatura dos jovens leitores/leitoras.

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