Os desafios da técnica do roteiro em “Story”, de Robert McKee

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Story é um trabalho muitíssimo bem executado por um profissional que dedicou a vida à sétima arte. Entender sobre o roteiro de cinema, mesmo para os leigos, pode ser de grande utilidade.

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Nicolas Cage e Robert McKee em Adaptation, de Spike Jonze.

No filme Adaptação (2002), dirigido por Spike Jonze, o personagem de Nicolas Cage, desesperado por sua dificuldade em produzir uma adaptação cinematográfica para determinado romance, decide frequentar o seminário de escrita criativa de um dos maiores gurus de Hollywood – o escritor Robert McKee. Lá, ao perguntar sobre a possibilidade de escrever histórias mais parecidas com o mundo real, “em que nada acontece e as pessoas não mudam”, recebe uma resposta aos berros sobre tudo o que a vida tem a oferecer diariamente, como assassinatos, genocídios, traições e salvamentos. No final, o escritor se recolhe de volta a seu assento, mais assustado e, certamente, muito mais inseguro do que antes.

A graça dessa cena está no fato de que ela, assim como muitos outros pontos do filme “Adaptação”, é baseada em elementos reais: o professor Robert McKee existe e o seminário sobre a escrita de roteiros visto na tela é uma das mais famosas iniciativas dessa natureza. Foi a experiência de anos ministrando essas aulas que permitiu a McKee lançar Story – Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiros.

O livro, um singelo calhamaço de quatrocentas páginas, não deve assustar pelo tamanho: sua leitura é prazerosa e fluída, o que se deve, em grande parte, ao estilo direto e pessoal do autor. A impressão é de termos McKee sentado ao nosso lado, batendo um papo descontraído sobre a produção do texto cinematográfico. Em suas lições, ele cita inúmeros exemplos de filmes – de Casablanca a Guerra nas Estrelas – a fim de garantir que suas ideias sejam compreendidas; também prevê dúvidas de forma a respondê-las com antecedência, construindo um bom diálogo com seu interlocutor; destaca visualmente as definições essenciais de cada capítulo, o que facilita anotações e consultas futuras; e, por fim, dá algumas dicas de produção textual que soam mais afetivas do que propriamente técnicas. É uma abordagem agradável e funcional. Não irrita o leitor com pedantismos e, de quebra, ainda o conduz com segurança por um terreno em que muitos terão receio de escorregar. McKee acaba criando uma relação calorosa com seus aprendizes – ao contrário da sua versão autoritária e altiva do filme – o que facilita o entendimento e a assimilação de suas idéias.

A maior parte delas é absolutamente relevante. O autor evidencia toda a construção do texto cinematográfico, mostrando o trabalho e o cuidado necessários para montá-lo, do menor beat aos grandes arcos da trama. Por meio de suas observações, percebemos o que move uma boa história, assim como o que pode atrapalhá-la; percebemos o que torna um personagem interessante, e de que forma os elementos que agem nesse sentido podem ser incluídos no texto; percebemos como as partes do roteiro devem se suceder para que as ideias gestadas pelo autor ganhem densidade máxima e sejam capazes de comover a audiência. Em suma, entramos em contato com os pontos centrais da construção do gênero. É claro que alguns desses processos são familiares a uma parcela do público leitor, muitas vezes de forma intuitiva. No entanto, saber da existência deles não é o mesmo que acompanhar o seu desmembramento cuidadoso, enxergando de maneira clara as engrenagens internas que os fazem funcionar. Para McKee, essa é a chave para se tornar um bom roteirista. Afinal, é com a consciência que vem o domínio da técnica, e é somente a partir desse domínio que surgem as boas histórias.

Livro-StoryHá alguns momentos, entretanto, em que algumas das premissas do autor podem parecer exageradas. Apesar de ressaltar que não tem qualquer intenção de estabelecer um manual de regras rígidas, uma parte de suas colocações acaba soando intransigente e redutora. O capítulo que trata dos gêneros cinematográficos, por exemplo, faz questão de categorizar tudo o que já se produziu no cinema dentro de determinados rótulos, o que cria uma lista imensa de possibilidades para o roteirista – grande a ponto de tornar questionável a sua própria existência. Não contente, McKee ainda se esforça pra provar que o enquadramento de um filme em determinado gênero não sufoca a imaginação do escritor, obviamente pensando na crítica direta que muitos farão a essa sua opção de construção textual. Tais ideias são comunicadas de forma segura e assertiva, com o claro objetivo de convencer o leitor. Por isso, após a leitura de alguns capítulos, os mais atentos podem sair com a nítida impressão de que a cativante defesa da liberdade proferida pelo escritor no início da obra não se sustenta, servindo apenas como mero recurso retórico.

Além disso, a parte em que McKee discorre sobre o mercado cinematográfico acaba despertando pouco interesse nos leitores brasileiros. Isso porque o cenário americano, de dentro do qual o autor reflete e fala, difere bastante do nosso. Nos Estados Unidos, neste exato instante, há inúmeros autores escrevendo roteiros, todos com o mesmo sonho de emplacar um filme que gere lucros fabulosos e tenha um público de cair o queixo, o que, considerando o tamanho da indústria cinematográfica americana, não parece um desejo absurdo; aqui, poucos são os que se arriscam na produção desse gênero, provavelmente desmotivados pelas chances ínfimas de que seu texto chegue às telas, seja pela pouca quantidade de produções anuais de que se tem notícia ou pela dificuldade de fazer um roteiro chegar nas mãos certas. São realidades de circulação bastante desiguais. Contudo, os trechos dedicados à exploração mercadológica do texto são esparsos dentro da obra, não comprometendo o monumental estudo realizado. Eles podem ser facilmente ignorados pelo leitor que não tenha qualquer aspiração hollywoodiana em seu horizonte direto. Deixam, no entanto, o leitor brasileiro ainda no anseio de uma obra que aborde tal temática de um ponto de vista mais próximo do seu contexto atual, que é ainda numericamente incipiente, mas vem dando mostras recentes de um fôlego animador.

Que esses pequenos “senões”, no entanto, não sirvam para afastar os interessados dessa leitura. Story é um trabalho muitíssimo bem executado por um profissional que dedicou a vida à sétima arte. Entender sobre o roteiro de cinema, mesmo para os leigos, pode ser de grande utilidade: aprende-se a dizer mais com menos e, para fazer isso de forma competente, aprende-se a manipular com mais destreza as variáveis de um texto ficcional. Sem dúvida, o leitor sairá do processo tendo uma visão muito mais apurada sobre como contar uma história, o que poderá auxiliá-lo inclusive em outros tipos de criação. E, quem sabe, um ou outro interessado na carreira cinematográfica possam ganhar, com Story, o conhecimento que faltava para se dedicarem de corpo, alma e técnica à produção do roteiro no Brasil.

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