
“Os donos do orvalho” é um dos precursores da literatura haitiana moderna, ao tratar da aspiração por liberdade dos povos colonizados.

Como se vê o Haiti
No que se pensa ao ouvir a palavra Haiti? Miséria? Gangues? Sucessivos golpes militares e ocupações estrangeiras? Terremotos?
Sim, a chance de que essa sucessão de catástrofes (mais histórico-sociais do que naturais) venha à mente é bastante provável, dada a abordagem reproduzida pela imprensa hegemônica. De fato, ninguém negará ao país das montanhas altas (“Ayiti”, nome indígena para a ilha caribenha, antes da colonização espanhola e, depois, francesa) as mazelas, das quais ser o país mais pobre do continente americano é dado mais do que eloquente.
Mas esse também foi o palco de uma singularmente vitoriosa revolução de escravos; de camponeses feitos guerrilheiros que preferiram queimar a própria terra a entregá-la a tantos quantos invasores pretenderam conquistá-la, inclusive as tropas napoleônicas que tiveram sob suas botas quase toda a Europa; rico caldeirão onde se misturaram e reinventaram línguas, culturas e povos.
Liberdade e fatalismo
Publicado em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, “Os donos do orvalho”, de Jacques Roumain (cuja primeira edição brasileira só apareceu dez anos depois, organizada por Jorge Amado), é, sob muitos aspectos, um livro visionário. Escrito quando nos campos de batalha ainda era renhida a luta dos Aliados contra a barbárie nazi-fascista, o livro repercute e antecipa a aspiração por liberdade dos povos colonizados que passaria a primeiro plano da história e da política universais nos anos posteriores ao conflito. “Os donos do orvalho” também fala sobre uma batalha, não raro sangrenta, mas uma batalha que se desenrola no interior dos países — entre passado e futuro, entre novos e velhos hábitos, entre opressão e resistência, entre classes sociais.
No plano literário, também se percebe neste trabalho seminal muito do que caracterizaria o romance social africano das décadas seguintes. Aqui, como ali, também se notam as descrições de pessoas e paisagens a se mimetizar e influenciar reciprocamente; o contraste entre meio inóspito e psique fecunda; as duras necessidades a tanger escolhas e destinos, que se esbatem contra sua sina, todavia; o lirismo que ilumina terras e almas à primeira vista desoladas:
“Na lombada do morro havia uma vermelhidão indecisa. Mas o Sol já não estava lá, navegava atrás da mata. Logo seria a noite, a envolver em silêncio essa terra amarga, afogando na sombra, cheia da paz do sono, esses homens entregues à desgraça, e, depois, a aurora se ergueria com o canto rouquenho dos galos, o dia recomeçaria, igual a outro dia, e também sem esperança”
Escravidão e liberdade
Manuel, o protagonista, regressa de uma jornada de quinze anos como cortador de cana em Cuba, onde conheceu a dura exploração canavieira, uma espécie de nova escravidão:
“Para serenar o espírito acendeu um cigarro e tragou profundamente o fumo acre que lhe recordava Cuba, a imensidão dos campos de cana, estendida de um horizonte a outro, a usina da central açucareira, o barracão fétido onde dormiam como um rebanho, ele e seus camaradas de infortúnio, depois de uma jornada exaustiva.”
Mas, também, a força da ação coletiva dos trabalhadores:
“-Olha este dedo, como é fraco, e este outro, é tão magro, e mais este, que não é lá essas coisas, e este aqui, coitado, não é lá muito forte também, e o último, sozinho e sem ajuda. – Cerrou o punho. – E agora? Não é uma mão sólida, bem maciça, bem forte? Parece que sim, hem? Pois bem, a greve é isso: um NÃO de mil vozes todas juntas e que se abate sobre a mesa do patrão, como uma rocha pesada. Não! Digo–te eu, não! E é não! Nada de trabalho, nada de safra, não se corta nem uma folha de cana, se não pagares o valor do trabalho da gente. E o patrão, que é que ele pode fazer? Chamar a polícia. Isso, porque patrão e polícia são uma cambada só, se unem como a pele e a camisa. E dizer: pau nesses bandidos. Nós não somos bandidos, somos trabalhadores, proletários – é assim que se diz – e a gente fica firme, unido, debaixo do temporal solto; alguns caem, mas o resto está firme, mesmo com fome, com a polícia, com prisão, e o tempo está passando, e a cana esperando, apodrecendo na roça. A usina espera com os dentes de suas moendas parados, o patrão espera fazendo a conta do que deixa de entrar para o seu bolso, e, no fim, é obrigado a fazer o acordo: ‘Então, que é que há?’ – vem ele dizendo – ‘não se pode conversar?’ Claro que se pode conversar. É que nós ganhamos a luta. E por quê? Porque estamos unidos, fundidos num só bloco como as montanhas, não há força na terra nem no inferno que possa abalar e acabar com ela.”
Pelos seus olhos, somos apresentados, pouco a pouco, a uma galeria de personagens cuja simplicidade descritiva faz ressaltar neles o que é essencial: a mãe, a velha Délira, crente no poder dos vodus e das rezas; o pai, Bienaimé, antigo lavrador amargurado com a terra ressequida e a discórdia que se abateu sobre seus velhos companheiros; a bela e arredia Annaíse, que “tinha belos dentes brancos, olhos francos e a pele preta muito fina”, por quem logo se apaixona e tentará envolver na busca de uma fonte de água que abasteça a comunidade, ideia-força que norteará todos os seus atos; o fiel Laurore Laurélién.
Por outro lado, também conhecemos os homens alquebrados pelo alcoolismo e pela fome, joguetes do chefe de polícia, do padre local (que acelera a missa durante o funeral dos mais pobres, tarefa facilitada pelo fato de esta ser celebrada em latim), do magistrado, dos usurários.
A luta de Manuel contra o opressor direto se desdobra numa luta em duas frentes, que colide também com o fatalismo dos oprimidos, isto é, a arraigada percepção neles de que as coisas são como são por alguma espécie de imperativo categórico, social ou divino. É o que se percebe, por exemplo, neste diálogo entre o protagonista e Annaíse:
“- A raiva. A raiva faz a gente fechar a boca e apertar mais o cinto quando se tem fome. Quando a gente fez huelga a gente se pôs em linha e cada um estava com a sua raiva como se fosse um fuzil carregado. O ódio é o direito e a justiça da gente. Com ele ninguém pode. Compreendia mal o que ele dizia, mas dava toda a atenção a esta voz sombria, que pesava as frases, introduzindo nelas, de quando em quando, o brilho de uma palavra estrangeira
Ela suspirou.
– Jesus, Maria, Virgem Santíssima! Para nós, os infelizes, a vida é uma caminhada sem perdão pela miséria. É assim, meu irmão. Não se tem consolo.
– Na verdade a gente tem um consolo. Eu explico: é a terra, é teu pedaço de terra, feito para a coragem de teus braços, com tuas árvores frutíferas em roda, teus animais no pasto, todas as tuas necessidades ao alcance da mão e da tua liberdade, que só depende da estação, boa ou má, da chuva ou da seca.
– É verdade –afirmou ela –mas a terra não dá mais nada, e quando lhe arrancas por acaso, algumas batatas, alguns grãos de milhete, tu os vendes por um nada no mercado. Por isso, nos dias de hoje a vida é uma penitência, é o que é”.
Mesmo a prática religiosa de Manuel aparece secularizada, mediada pela tradição coletivista da comunidade camponesa, que ele procura resgatar e superar ao mesmo tempo:
“– Então, que é que vale mais a pena, Manuel? E não tens medo de faltar com respeito aos velhos da Guiné?
– Não, tenho consideração com os antigos, mas o sangue de um galo ou de um cabrito não pode mudar as estações, mudar a direção das nuvens e enchê-las de água, como uma bexiga. Na outra noite, na festa “Legba”, cantei e dancei a vontade, sou negro, não sou? E caí na festa como um negro de verdade. Quando os tambores batem, eu sinto um vazio na boca do estômago, e uma comichão na altura dos rins, e eletricidade nas pernas. Preciso entrar na roda. É isso, mais nada.
– Foi nesse país de Cuba que te ensinaram estas ideias?
– A experiência é o cajado do cego e eu aprendi uma coisa: o importante, se queres saber, é a revolta, é saber que o homem faz a vida como o padeiro faz o pão”.
“O homem faz a vida como o padeiro faz o pão”. Está aqui, em cheio, o tema da liberdade, tão célebre quanto multifacetado. O autor parece se filiar à longa tradição, fundada pelo filósofo Hegel, que entende a liberdade como o conhecimento e a superação – dialética – da necessidade.
Aliás, alguns ensaios já pretenderam demonstrar que o autor de “Fenomenologia do Espírito” teria se baseado nos seus estudos da revolução haitiana para formular a sua célebre dialética do senhor e do escravo*.
De fato, a ideia de liberdade, no romance de Jacques Roumain, rechaça qualquer individualismo ou ceticismo. Só pode ser dono da própria vida — no caso, água e a vida se confundem num só fluxo — quem for capaz de se apropriar (coletivamente) das próprias condições que permitem a vida humana em geral:
“Que é que nós somos? Se é uma pergunta, vou dar a resposta; pois somos este país e ele é nada sem nós, nada de nada. Quem planta, quem rega, quem colhe? O café, o algodão, o arroz, a cana, o cacau, o milho, as bananas, os víveres e todas as frutas, quem é, senão nós, que faz tudo isso crescer? E assim mesmo somos pobres, é verdade; somos infelizes, é verdade; somos miseráveis, é verdade. Mas sabes porque, irmão? Por causa da nossa ignorância: não sabemos ainda que somos uma força, uma força única: todos os camponeses, todos os negros das planícies e dos morros juntos. Algum dia, quando a gente meter na cabeça esta verdade, nós nos levantaremos de um canto a outro do país e faremos a assembléia geral dos donos do orvalho, o grande mutirão dos trabalhadores da terra, para acabar com a miséria e plantar a vida nova”.
A vida nova como o resultado de um imenso mutirão: talvez seja essa perspectiva de Manuel que mantenha “Os donos do orvalho” como um livro de grande atualidade, em tempos de reiterados chamados a “flexibilizações” e “reinvenções” que não passam de eufemismos para o mais selvagem individualismo e a frieza burguesa diante do sofrimento alheio — cujos alvos são os marginalizados de sempre. Afinal, o Haiti é aqui.
Sobre o autor
Jacques Roumain foi escritor, ativista político e folclorista haitiano. Nascido em 1907, no interior de uma família abastada, diplomou-se na Europa, onde entrou em contato com os círculos revolucionários. Fundou, em 1934, o Partido Comunista do Haiti. De volta ao país natal, criou em 1941 o “Bureau D’éthnografie”. Faleceu em 1944, mesmo ano em que foi publicado “Os donos do orvalho”, considerado uma das principais obras da literatura caribenha. Após o triunfo da revolução cubana, o romance foi adaptado para o cinema deste país, pelas mãos do diretor Tomás Gutiérrez Alea, sob o título de Cumbite.
Referências:
* Ver: “Hegel e o Haiti”, Susan Buck-Morss, n-1 edições, 2017.
ROUMAIN, Jacques. Os donos do orvalho.
Créditos HL
Esse texto é de Igor Mendes da Silva, para a nossa coluna Letras Fortes. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.