Em entrevista a Ãngel GurrÃa-Quintana da Paris Review, Orhan Pamuk, grande romancista turco da atualidade, fala sobre quando o seu amor pela pintura deu espaço ao amor pela literatura
Década passada, ainda parece ter sido ontem a premiação de Orhan Pamuk para o Nobel de Literatura. Ele veio ao Brasil para a Flip antes de receber o prêmio – demos sorte ao turquês, que se expôs em nossas terras, e também nessa entrevista para Ãngel GurrÃa-Quintana, publicada na edição 175 da Paris Review, de 2005. Separamos alguns trechos dela, é sua vez de conhecer um pouco da sorte dele:
Ãngel GurrÃa-Quintana: Como você se sente dando entrevistas?
Orhan Pamuk: As vezes fico nervoso porque dou respostas estúpidas para certas perguntas sem sentido. Acontece tanto em turco quanto em inglês. Eu falo mau turquês e falo sentenças estúpidas. Fui mais atacado na Turquia pelas minhas entrevistas do que pelos meus livros. Polemistas políticos não leem romances por lá.
AGQ: Na maioria você recebeu respostas positivas aos seus livros na Europa e nos Estados Unidos. Qual foi a recepção crítica na Turquia?
OP: Esses bons anos se foram. Quando eu estava publicando meus primeiros livros, a geração anterior de autores estava desaparecendo, então fui bem recepcionado porque eu era um novo autor.
AGQ: Quando diz geração anterior, quem você tem em mente?
OP: Os autores que sentiam uma responsabilidade social, que sentiam que a literatura serve à moralidade à política. Eles eram realistas plenos, não experimentais. Como autores em tantos países pobres, eles desperdiçaram seus talentos tentando servir à nação. Eu não queria ser como eles, porque mesmo na minha juventude eu aproveitei [as leituras de] Faulkner, Virginia Woolf, Proust – nunca aspirei ao modelo sócio-realista de Steinbeck e Gorky. A literatura produzida nos anos 60 e 70 estava ficando ultrapassada, então fui recepcionado como um autor de nova geração.
Após a metade da década de 90, quando meus livros começaram a vender quantidades que ninguém na turquia sonhou, meus anos de lua de mel com a imprensa e a intelectualidade turquesa acabaram. Dali em diante, a recepção crítica era mais uma reação a publicidade e as vendas em vez do conteúdo dos meus livros. Agora, infelizmente, sou notório por meus comentários políticos – muitos deles pegos de entrevistas internacionais e vergonhosamente manipulados por alguns jornais nacionalistas Turqueses que me fazem parecer mais radical e tolo politicamente do que realmente sou.
AGQ: Orhan, seu homônimo e narrador de Neve se descreveu como um escrivão que se senta na mesma hora todo dia. Você tem essa mesma disciplina na escrita?
OP: Eu estava enfatizando a natureza clerical do romancista em vez da do poeta, que tem uma imensa e prestigiada tradição na Turquia. Ser poeta é algo popular e respeitoso. Muitos dos sultões e homens de Estados Otomanos eram poetas. Mas não da maneira que entendemos poetas hoje. Por centenas de anos foi uma forma de se estabelecer como um intelectual. Muitas dessas pessoas costumavam colecionar suas poesias em manuscritos chamados divãs. De fato, a poesia da corte Otomana é chamada poesia de divã. Metade dos homens de Estado Otomano fizeram divãs.Era uma forma sofisticada e educada de escrever coisas, com muitas regras e rituais. Muito convencional e muito repetitivo. Após as ideias do Ocidente terem vindo à Turquia, esse legado foi mesclado com a ideia romântica e moderna do poeta como alguém que queima por verdade. Adicionou peso extra ao prestígio do poeta. Por outro lado, um romancista é essencialmente uma pessoa que cobre a distância através de sua paciência, lentamente, como uma formiga. Um romancista nos impressiona não por suas visões demoníacas e românticas, mas por sua paciência.
AGQ: Quando você era jovem você quis ser um pintor. Quando o seu amor pela pintura deu espaço ao seu amor pela escrita?
OP: Com 22 anos. Desde os meus 7 eu queria ser um pintor, e minha família aceitou isso. Todos pensaram que eu seria um pintor famoso. Mas algo aconteceu na minha cabeça – eu percebi que um parafuso afrouxou – e parei de pintar e imediatamente comecei meu primeiro romance.
AGQ: Um parafuso afrouxou?
OP: Não consigo dizer os meus motivos para fazer aquilo. Recentemente publiquei um livro chamado Istambul. Metade dele é minha autobiografia até aquele momento e a outra metade é um ensaio sobre Istambul, ou mais precisamente, Istmabul pela visão de uma criança. É uma combinação de pensar sobre imagens e paisagens e a química de uma cidade, e a percepção de uma criança sobre essa cidade, e a autogiografia dessa criança. A última sentença do livro diz “Eu não quero ser um artista”, eu disse. “Eu vou ser um escritor”. E isso não é explicado. Embora ler o livro inteiro possa explicar algo.
AGQ: Sua família ficou feliz com essa decisão?
OP: Minha mãe ficou triste. Meu em parte foi mais compreensivo porque na juventude ele quis ser poeta e traduziu Válery para o turquês, mas desistiu quando foi zombado pelo círculo de classe mais elevada ao qual ele pertencia.
AGQ: A abertura de A Nova Vida é “Eu li um livro um dia e minha inteira mudou”. Algum livro teve esse efeito em você?
OP: O Som e a Fúria foi muito importante para mim quando eu tinha 21, 22. Comprei uma cópia da edição da Penguin. Era difícil de entender, especialmente com meu inglês pobre. Mas tinha uma tradução maravilhosa do livro para o turquês, então eu colocava o turquês e o inglês na mesa e lia meio parágrafo de um e ia voltava a outra. Aquele livro deixou uma marca em mim. Aquele resíduo foi a voz que desenvolvi. Logo comecei a escrever na primeira pessoa do singular. Na maior parte do tempo me sinto melhor quando estou interpretando outra pessoa do que quando escrevo em terceira pessoa.
AGQ: Com frequência os críticos caracterizam seus romances como pós-modernos. Me parece, porém, que você recorre a truques narrativos principalmente de fontes tradicionais. Você cita, por exemplo, As Mil e Uma Noites e outros textos clássicos da tradição oriental.
OP: Isso começou com O Livro Negro, apesar de eu ter lido Borges e Calvino mais cedo. Fui aos Estados Unidos com minha esposa em 1985, e lá encontrei a predominância e a imensa riqueza da cultura Americana. Com um turco vindo do Oriente Médio, tentando se reestabelecer como autor, eu me senti intimidado. Então retornei, voltei às minhas ‘raízes’. Percebi que minha geração tinha de inventar uma literatura nacional moderna.
Borges e Calvino me libertara. A conotação da literatura islâmica tradicional era tão reacionária, tão política, e usada por conservadores de uma forma tão antiquada e tola, que eu nunca pensei que poderia fazer algo com esse material. Mas nos Estados Unidos, percebi que poderia voltar para esse material com uma mentalidade Calvinesca ou Borgianesca. Eu tive que começar a fazer uma distinção forte entre as conotações religiosas e literárias da literatura islâmica, para que eu pudesse me apropriar facilmente a riqueza de seus jogos, artifícios e parábolas. A Turquia tinha uma tradição sofisticada de uma literatura ornamental altamente refinada. Mas então os escritores socialmente comprometidos esvaziaram nossa literatura de seu conteúdo inovador.
Há muitas alegorias que se repetem nas várias tradições orais de narrar histórias – China, Índia Pérsia.Eu decidi as usar e contextualizar na Istambul contemporânea. É um experimento – coloque tudo junto, como em uma colagem Dadaísta; O Livro Negro tem essa qualidade. As vezes todas essas fontes se fundem e algo novo emerge. Então ajustei todas essas histórias reescritas a Istambul, adicionei um enredo detetivesco, e então veio O Livro Negro. Mas em sua fonte estava a força completa da cultura americana e o meu desejo de ser um escritor experimental sério. Eu não podia escrever um comentário social sobre os problemas da Turquia – eu era intimidado por eles. Então tive de tentar outra coisa.
Clique aqui para conferir a entrevista original em inglês!