O monstro mais fantástico de toda a história ocidental só poderia ser o demônio no centro do inferno, do quadro tríptico de Hieronymus Bosch, The Garden of Earthly Delights, pintado por volta do início do século 16. A pintura tem um rosto humano com uma expressão inescrutável, seu torso é um ovo quebrado que parece estar brotando a partir dos galhos de árvores mortas, ocas. Em sua cabeça há um chapéu com uma enorme gaita de foles. As chamas em torno dele são as das antigas usinas de ferro. Muitas figuras na pintura parecem se mover irregularmente, em ritmos mecânicos, como aqueles que marcham ao redor da aba do chapéu do demônio. Precisamente, a falta de uma interpretação inequívoca ajudou a tornar a imagem num ícone difuso, medos meio articulados que permeiam a era industrial emergente.
Cerca de apenas dois séculos antes, Dante, no Inferno, havia descrito um inferno profundamente diferente. A inscrição acima do portão continha as palavras: “Eu (Inferno) fui criado pelo poder divino, pela mais alta sabedoria e amor maior.” Prova disso é a ordem extrema que prevalece no submundo. Ele está nitidamente dividido em nove níveis, onde cada pessoa é colocada no local que corresponde exatamente à natureza e gravidade do seu pecado. Em contrapartida, o inferno de Bosch é um estado de caos, uma desintegração não apenas de ordem e justiça, mas também de todas as categorias com as quais temos o hábito de tentar dar sentido ao mundo. Há pouca distinção entre a natureza e o artifício, pessoas e animais, ou animais e plantas. De fato, pode sequer não haver muita diferença entre a punição eterna e a vida cotidiana. A maioria dos pecadores parece, pelas expressões em seus rostos, pouco consciente de que está sendo atormentada enquanto cuida de suas tarefas. Neste abismo, até mesmo o próprio Diabo já não parece exercer muita autoridade.
Pode-se dizer, então, que o inferno de Bosch é uma implosão do inferno de Dante. Tradições humanistas geralmente tentam, seja através da ciência ou da teologia, instituir uma complexa condição sobre a experiência. Eles contam com classificações elaboradas e consideram recursos imateriais, tais como a razão, a sensibilidade, ou a alma como predominantemente um direito inato humano. Mas a própria complexidade dessa condição indica que ela é constantemente ameaçada de entrar em colapso, e a era industrial sempre foi acompanhada por um tom de niilismo*. Há também um substrato de animismo** ─ o que John Ruskin, crítico vitoriano, chamou de falácia patética ─ que surge periodicamente em muitos contextos desde a poesia lírica à filosofia.
A imaginação humana é continuamente ativa e tão intensa que os seres imaginários ameaçam constantemente dominar o nosso senso de realidade. Criaturas fantásticas são encontradas na arte de todos os tempos e lugares, mas em algumas culturas as pessoas se sentem mais ameaçadas por elas. O Ocidente tem sido menos visualmente inventivo do que o antigo Egito, China, Índia e América Central. Nas religiões abraâmicas, a representação de animais fantásticos foi inibida pela injunção bíblica contra a arte representativa, imposta com diferentes graus de severidade em diferentes formas de judaísmo, cristianismo e islamismo. Nas tradições greco-romanas, a representação de animais imaginários se tornou padronizado, evitando uma propagação constante de inovações. Tradições muito mais antigas até mesmo do que o livro do Apocalipse fizeram a proliferação de animais estranhos – bestas – num sinal de que estamos nos aproximando do fim dos tempos.
Mas alguns artistas, espalhados ao longo dos séculos, têm elevado praticamente todas as restrições em sua imaginação e criado uma mistura de animais incríveis, misturando características humanas com as dos animais, plantas e objetos. Um dos primeiros foi o misterioso Master of Zarko na ilha de Creta, no século VII aC, que esculpiu imagens fantásticas sobre pedras e só poderia ser, apesar do seu nome e história serem desconhecidos, um dos artistas mais influentes de todos os tempos que já existiu. Nos últimos duzentos anos, os artistas do fantasmagórico incluem J.J. Grandville na França, Kawanabe Kyōsai no Japão, e Dr. Seuss na América. Quando eles dão uma forma tangível para aquele caos primordial, ela frequentemente parece menos ameaçadora e mais engraçada do que poderíamos ter esperado inicialmente.
Hoje, o crescimento de dispositivos eletrônicos sofisticados e da biotecnologia é o que nos leva a um mundo fantasmagórico. Muitas histórias, como as lendas judaicas de Golem na Cracóvia medieval e de Frankenstein de Mary Shelley, alertaram que os seres humanos podem ser desafiados, e talvez até mesmo substituídos, por suas criações. Na ficção científica distópica, um tropo*** recorrente é o computador consciente como Hal no filme Uma Odisséia no Espaço (2001), de Stanley Kubrick. Robôs agora realizam entrevistas telefônicas e percorrem através do tráfego em Manhattan. Material genético humano é inserido em porcos, para produzir órgãos adequados para transplante em homens e mulheres. Crianças crescem cuidando de animais de estimação virtuais como os tamagotchis. Mas, ao mesmo tempo em que desafiam a singularidade, o poder e autonomia humana, essas evoluções não podem colidir com o mistério poético no âmago da humanidade. Os heróis épicos e dos contos de fadas não parecem menos humanos por perambularem entre as criaturas que, às vezes, mostram muito mais sabedoria e poder do que a nossa.
Traduzido do Huffington post.
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* niilismo: sinônimo de anarquia. Apareceu pela primeira vez no romance Pais e filhos, de Ivan Turgueniev, em que o personagem dizia que “Um niilista é um homem que não se curva ante qualquer autoridade; nem aceita nenhum princípio sem exame, qualquer que seja o respeito que esse princípio envolva”.
* animismo: tudo o que está relacionado à natureza – homens, animais, plantas, fenômenos – possui alma.
*** tropo: figura de linguagem.