É preciso tomar cuidado, em especial no que se refere aos jovens, pois o conceito de Academia é muito mais abrangente do que os pseudo-intelectuais e as paredes segregadoras das universidades.
Por: Marcelo Vinicius e Yves São Paulo
Os ditos entendidos de filosofia infestam nossas universidades. Dizem ter lido de tudo, mesmo aquelas obras mais densas de autores unanimemente considerados herméticos. O leitor provavelmente terá uma figura semelhante em mente. Mas será que uma lida rápida e superficial de um autor (ou uma literatura secundária sobre este autor) é suficiente para que possamos levantar críticas contundentes acerca de seu trabalho? Ou será que isto nos levaria ao preconceito acadêmico (quando somos contrários a um autor ou filosofia sem nunca tê-la lido)?
Dentro dessa lógica de pseudo-leitores de reduzir conhecimentos densos a uma superficialidade, a solução mais óbvia seria, então, examinar a obra de um criador e perguntar o que ela explica – se explica –, se entre uma ideia e outra existe sintonia. Em caso afirmativo, concluiríamos pela perenidade de um pensamento, de uma obra. O problema, posto nesses termos, parece de uma santa simplicidade. Uma ida ao texto resolveria tudo. Só que o estudo de um texto teórico não é tão simples. Existem detalhes que podem passar despercebidos em uma primeira leitura. Detalhes estes que somente podem ser encontrados com o estudo quase exaustivo de um determinado escrito.
O entendimento completo da obra de um pensador se deve à dedicação do pesquisador. Trata-se pegar uma obra de 500 páginas, por exemplo, e dissecar a cada parágrafo. Digo que é ser dissecado como uma espécie de cientista diante de um fenômeno a ser desvendado, mas sem negar a sua totalidade. Considerando o todo levando em consideração as partes e suas inter-relações. Cada elemento é analisado, desde o tempo verbal utilizado, a forma das frases, as idéias utilizadas e as pretendidas.
E ainda evitar ao máximo a parcialidade, pelo menos tomar uma postura honesta para com a tal obra, pois não se busca justificativa alguma ali, mas procura compreender o que aconteceu na obra, com aquele pensador que é estudado criticamente. Ao chegar a uma conclusão, não se pode parar nela, deve-se analisar como foi possível que tal autor escrevesse tal coisa e não tal outra. Feita essa “acareação” de tais filósofos, dessa análise exaustiva, o leitor se posiciona diante de tais obras, considerando então o valor delas. É um trabalho árduo que requer completa dedicação do pesquisador.
João da Penha, escritor, ensaísta e tradutor de poetas russos como Iessienin e Armátova, disse uma vez, à Revista Cult (edição 91), que o excesso de visibilidade de algo não o torna, por si só, mais simples. Por isso, a maior compreensão de um fato não depende necessariamente de sua evidência. Trata-se de lição acaciana de razoável valor.
Contudo, apesar disso, muitos acham que já conhecem tais pensadores e os criticam através de um pré-conceito disfarçado de conceito, mas a ridícula situação de alguém que critica o que nunca leu de fato, já é suficiente para desqualificar a sua crítica. E, como discutido aqui, o ler de fato não é simplesmente ler, é saber interpretar, o que também não é tão pueril como o desgaste que a palavra “interpretar” vem ganhando, devido ao decorrente uso dela no cotidiano popular. O ato de ler, não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita.
Como observa o escritor Vergílio Ferreira, atualmente associado à literatura através da atribuição do “Prémio Vergílio Ferreira” e, em 1992, laureado com o “Prêmio Camões”: é comum cada um extrair de uma obra o que está de acordo com seus interesses, prática (nada rigorosa, é bom lembrar) típica, ele afirma, de gente caracterizada como “pobre gago mental”.
Isso, quando o sujeito de fato “leu” a tal obra, e coloco aqui o “leu” entre aspas, pois, como já percebido, ler não é só juntar palavras, formar frases e criar sentidos. E quando pensamos que isso já é o fundo do poço, lembre-se que se chover nós morreremos afogados nele e pior: já estamos morrendo afogados, pois há “analistas” que não avançaram no conhecimento da obra de um pensador além da produção jornalística do filósofo reunida na coleção de uma determinada editora ou quando escrevem sobre a obra filosófica de um pensador não raro tiveram somente contato quase exclusivamente com bibliografia secundária, por comentadores ou por meio de seus detratores.
Já os erros de má-fé, embora não exclusivos, ocorrem com certa freqüência no âmbito acadêmico, maculando assim seu sempre bem-vindo senso de rigor. É comum, nesses casos, nos depararmos com avaliações que, mais do que impressionistas, beiram ao temperamento peculiar, ou melhor, nas palavras do Vergílio Ferreira: “pobre gago mental”.
Mesmo os grandes pensadores podem supostamente tropeçar em suas leituras de outros pensadores. Mas isto não significa que porque estudo o filósofo “A” devo necessariamente criticar o filósofo “B” levado pelo que “A” escreve. Conhecer bem o pensamento do filósofo “B” é imprescindível no momento de criticá-lo. Vale o debruçar-se sobre os livros e investigar as motivações, tanto de afirmações quanto de negações.
Mas em certos casos, dentro da academia, podem ser encontrados sintomas de má-fé na atitude de diminuição do pensamento de determinados pensadores, sem que antes seja feito o necessário estudo da obra negativamente criticada.
Isso não significa que seja necessário o estudo de todas as obras já feitas na história da filosofia, psicologia, antropologia…, não! Os estudantes ainda possuem a liberdade de poderem criticar os pensadores quando quiserem, contanto que não seja em um ambiente de formação. Numa sala de aula, num grupo de pesquisa, ou mesmo numa apresentação em congresso, o pesquisador deve ter consciência de seu dever de formador de opiniões. Isto significa que não serão válidas as argumentações superficiais provenientes de leituras também superficiais. É o cuidado de manter a academia como local de formações de pensadores e não de mentes dogmatizadas.
No descuido para com o tratamento destas obras já muito trabalhadas, pode ser vista a falta de ética e irresponsabilidade para com o conhecimento que muitos, outrora, buscaram arduamente, a saber: os tais pensadores e os pesquisadores que sobre elas debruçaram. Pior do que mentir ou prejudicar uma educação, é proferir meia verdade, que, para agregar “discípulos” na sua “igrejinha” se faz necessário destruir o conhecimento embasado. É tirar o mérito de um pensador a favor do seu dogma ridículo disfarçado de discurso sério. É prejudicar e desrespeitar o sujeito que busca tal conhecimento. É destruir uma sociedade que já está destruída por falta de cidadãos críticos e reflexivos. É se posicionar a favor de um suposto saber em detrimento da educação de qualidade.
Isso também só faz afirmar o pensamento do clássico escritor Anton Tchekhov: “A universidade desenvolve todas as capacidades, inclusive a estupidez”.
Enfim, como disse Nicholas Kristof, jornalista ganhador de dois prêmios Pulitzer, em uma coluna do New York Times, publicada em 15 de fevereiro de 2014: o resultado disso é o isolamento dos pensadores sérios da vida pública, criando um vazio que é frequentemente preenchido por oportunistas e pseudo-intelectuais de pena afiada e garganta acelerada.