Os textos infinitos da OuLiPo

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Nota da Edição: ao colaborador Y. H. Speranza teria sido estipulado um prazo de duas semanas para a entrega de seu primeiro texto ao site Homo Literatus. Havia sido traçada a deadline sobre uma insuspeita segunda-feira de 14 de Outubro. O tema: a iniciativa da OuLiPo. Durante esse tempo, o autor manteve-se fora de contato. Quinta-feira (17), entretanto, um pacote teria sido entregue pelo correio em meu endereço residencial, vindo do Rio de Janeiro. Apesar do tamanho, era muito leve. Um aviso palavrento colado à lateral da caixa pedia desculpas pelo atraso, e misturado a um emaranhado de perdões, avisava: ali estava o artigo. Dentro do envelope, havia outros menores; e dentro destes, outros ainda. Confuso, dei atenção ao papel pardo de que era feito e reparei que sobre eles estavam textos, inscritos em letras de forma. Fez sentido o trecho do bilhete onde o autor se justificava incapaz de dar ao trabalho uma estrutura de frases e parágrafos, de concatenar ideias na sequência que é natural à ortografia (que, como teria concluído, era “uma monstruosidade como representação de como as verdades e os fatos refratam-se no universo, como veredas bifurcantes, ramificadas, como móbiles que se atam a móbiles que se atam a…”)

Cada envelope continha:

1) Um parágrafo de texto, rabiscado em sua superfície; e
2) Outros envelopes dentro, como ele mesmo, escritos.

Elaboravam assuntos e temas do envelope onde vinham, expandiam pequenos verbetes ou frases em um próprio parágrafo. Uma estrutura de raiz que termina em pequenos papéis dobrados ou amassados. No texto que segue, a Edição tentou organizar esse conteúdo em um artigo linear.

O autor, um estreante, foi notificado por telefone com relação ao trabalho que a complexidade de sua redação deram à edição do Homo Literatus. Pôs sua palavra de que não se repetirá.

Vilto Reis

 ***

O primeiro e maior envelope começava em seus rabiscos na obrigação de definir “OuLiPo” como a contração de Ouvroir de Littérature Potentielle. Dizia que iniciativa começara na França, em 1960. Foi fundada pelo escritor Raymond Queneau e pelo matemático François Le Lionnais. O objetivo do movimento era explorar as possibilidades da literatura através de restrições e ferramentas oferecidas pela lógica e pela matemática.

Dentro desse envelope, outro expandia Raymond Queneau. Queneau teria começado um surrealista, mas teria escapado do campo gravitacional de André Breton antes do fim de 1930. Três décadas mais tarde, George Clancier e Jean Lescure teriam presidido um seminário onde homenageavam o autor e reconheciam seu talento. Queneau usou esse encontro para exteriorizar suas ideias. Estava atormentado pelas vertiginosas possibilidades que a poesia lhe apresentava.

Raymond Queneau
Raymond Queneau

Como materialização dessa visão de longo alcance, teria criado a OuLiPo munido de seu poema combinatório Cent mille milliards de poèmes (“100.000.000.000.000 poemas”, criado com a ajuda de Le Lionnais). Nele, as páginas de 10 sonetos são cortadas em tiras, uma por verso, para que se possa entrelaçar qualquer combinação deles, totalizando assombrosas 10 elevado a 14 combinações. No mesmo envelope onde vinha Raymond Queneau, o autor incluiu uma das combinações desse poema:

“Le marbre pour l’acide est une friandise
se faire il pourrait bien que ce soit des jumeaux
sur l’antique bahut il choisit sa cerise
elle soufflait bien fort par dessus les côteaux

L’un et l’autre a raison non la foule insoumise
les gauchos dans la plaine agitaient leurs drapeaux
nous regrettions un peu ce tas de marchandise
à tous n’est pas donné d’aimer les chocs verbaux

Du pôle à Rosario fait une belle trotte
le chat fait un festin de têtes de linotte
lorsqu’il voit la gadoue il cherche le purin

Enfin on vend de tout homards et salicoques
exaltent l’espagnol les oreilles baroques
mais on n’aurait pas vu le métropolitain”

 

Abrimos então um envelope como que escrito de olhos fechados ou com a mão esquerda. Tem um cheiro estranho, e quer falar de surrealismo; que o movimento de Breton apostava no subconsciente para o que fosse espontâneo e verdadeiro na arte. Queria o autor involuntário. Mas Speranza explica que a Queneau e seus seguidores isso não interessava. Não fariam arte na velocidade do rio que brota aberto do inconsciente. Queneau se perguntou: o que faz de certa escolha de palavras preciosa, e outra banal? É de onde vêm do corpo? Ou poderia o brilho vir do jogo que fazem enquanto caem no papel? A Queneau não fascinavam os murmúrios que vinham do lado escuro da mente: e sim o infinito dos arranjos, as inesgotáveis combinações que cabiam às letras. Em seu Exercises de Style conta 99 vezes o mesmo acontecimento corriqueiro: um homem que é visto discutir em um ônibus, e que é visto novamente depois. As versões são todas diferentes, produzidas através de jogos de palavras, restrições: umas cultas, outras, cheias de números, diálogos, uma é um sonho, uma é um soneto… de quantas formas conta-se uma história?

Coube a Queneau então ignorar as carícias do subconsciente e virar-se então à matemática, que injeta na literatura como substância vivificante. Em 63, enuncia a função dessa ciência de barbas longas em seu artigo Literatura Potencial:

“(…) propor novas estruturas para escritores, essencialmente matemáticas, ou inventar novos procedimentos, artificiais ou mecânicos, que contribuam com a atividade literária: adereços para a inspiração, ou ainda, de certa maneira, auxílios para a criatividade.”

A lógica e os números amarram-se tão forte aos princípios da OuLiPo que Queneau escreveu, incentivado pela obra do matemático David Hilbert, o The Foundations of Literature, onde se propõe reerguer o prédio da literatura, axioma sobre axioma, teorema sobre teorema, no espírito dos Bourbaki e no modelo geométrico de Euclides (semelhante ao que Spinoza fez no Ética). Misturada nas folhas, encontramos um recorte, numa tradução anônima para o português. Mais confunde do que esclarece:

“Ao comentar o axioma I, 7 não exploramos todas as consequências que podem ser derivadas dele (assim como dos outros axiomas previamente considerados). Introduzimos assim o primeiro teorema demonstrado por Hilbert:

TEOREMA I: Duas frases separadas no mesmo parágrafo tem pelo menos uma palavra em comum; dois parágrafos separados não têm nenhuma palavra em comum ou tem uma palavra em comum e nenhuma em comum fora de sua frase.

COMENTÁRIO: Se os dois parágrafos tem uma palavra em comum, eles devem, na verdade, ter uma segunda (I, 7); mas, nesse caso, essas duas palavras determinam uma frase em de acordo com I, 1, essa frase é única. Os dois parágrafos, então, possuem uma frase em comum.

Assim voltamos para uma concepção mais Flaubertiana. A repetição de uma palavra usada em um parágrafo prévio requer a repetição de toda a frase – uma obrigação esmagadora. É melhor – e bem mais prudente – evitar qualquer repetição da palavra. Flaubert submete-se a essa regra escrupulosamente.”

 

Restrições similares a essas são o que integrantes da Oficina encontram para explorar novos caminhos. Em francês, os enunciados dessas modalidades de escrita constrangida eram as contraintes.

O lipograma é a forma que obriga um texto a não possuir uma das letras do alfabeto (ou mais). Postos de frente a esse desafio pela primeira vez, talvez estaquemos, é impossível juntar qualquer coisa maior que alguns parágrafos, textos atados com cordas dessa grossura não podem ir muito longe. Mas nos enganamos. O escritor francês Georges Perec foi um mestre desse tipo de contrainte. Seu romance La Disparition, de 1969, contém 300 páginas, 26 capítulos, e nenhuma vez a letra e (a mais comum do idioma francês). Conta uma história de investigação onde um grupo de personagens procura por um amigo perdido. Os personagens, inclusive, conseguem descobrir que o romance de que participam possui uma vogal faltando.

Em 72, Perec, em outra modalidade de escrita constrangida conhecida como univocálica, escreve Les Revenentes, na qual o e é a única vogal permitida.

Georges Perec
Georges Perec

E nos encontramos novamente imersos nos papéis e envelopes. Perdido em uma carta amarelada estampada com a foto risonha de Perec, Speranza nos envia um resumo da vida desse escritor. Nasceu de pais poloneses, e perdeu ambos para a Segunda Guerra. Contribuiu com ensaios para revistas literárias, alistou-se no exército, trabalhou como cruciverbalista e também como arquivista em um hospital, até 1978, quatro anos antes de sua morte. Sua obra-prima, o livro oulipiano A vida modo de usar, começou a ser escrito como resposta à morte de Raymond Queneau. O romance de 99 capítulos se passa inteiro durante um só momento, subsequente a morte do personagem principal, Bartlebooth, envolvido em uma trama complexa onde teria se proposto resolver 500 quebra-cabeças. O enredo destrincha muitas e muitas vidas entrelaçadas a do protagonista, cada capítulo correspondendo a um dos aposentos do prédio onde esse vive. Perec forçou-se a contar os capítulos em ordem baseada em uma das soluções do problema de xadrez conhecido como problema do cavalo, pensando no prédio como um tabuleiro 10×10. Nessa matriz, cada casa foi indexada com uma letra e um algarismo, garantindo-se que cada um desses símbolos só apareça uma vez em cada linha e cada coluna. O papel dessa marcação era que ela impusesse restrições à escrita dos capítulos. O par formado pela letra e pelo número era cruzado com uma série de mais de quarenta listas, que, para cada quarto, decidiam quais personagens estariam envolvidos, quais roupas vestiam e que emoções usavam. Georges Perec empregava essa cabala infernal como acessório para a criação literária, como Queneau havia estipulado para o ideal da OuLiPo. Onde escritores fora da Oficina deixariam suas memórias e inspirações determinarem os detalhes e a estrutura de seus romances, Perec delegava essa tarefa aos números.

Sobre A vida modo de usar, ainda encontramos uma citação de Ítalo Calvino, numa folha de seda dobrada doze vezes. Os olhos já estão cansados de ler. Eis que os papéis e os envelopes parecem finalmente se esgotar. Será? Não se sabe mais qual foi lido e qual não. Não faz mais tanta diferença assim:

 

“Exemplo daquilo que chamo de hiper-romance é A vida, modo de usar, romance extremamente longo, mas construído com muitas histórias que se cruzam (não é por nada que no subtítulo traz romances no plural), renovando o prazer dos grandes ciclos à la Balzac. Creio que este livro (…) talvez seja o último verdadeiro acontecimento na história do romance. E isso por vários motivos: o incomensurável do projeto nada obstante realizado; a novidade do estilo literário; o compêndio de uma tradição narrativa e a suma enciclopédica de saberes que dão forma a uma imagem do mundo; o sentido do hoje que é igualmente feito com acumulações do passado e com a vertigem do vácuo; a contínua simultaneidade de ironia e angústia; em suma, a maneira pela qual a busca de um projeto estrutural e o imponderável da poesia se tornam uma só coisa.”

 

Calvino também está em algum lugar no meio das cartas que reviramos madrugada adentro. Speranza parece ter algum carinho especial por esse escritor, ou indiferença, pela forma como seus verbetes foram colados com calma. Figura importante da OuLiPo, tem seu livro mais conhecido, Se um viajante numa noite de inverno, influenciado na estrutura pelos preceitos da Oficina. Se um viajante… é sobre um Leitor que lê um romance chamado Se um viajante numa noite de inverno; nos capítulos ímpares temos a perspectiva do Leitor, nos pares acompanhamos o que o Leitor lê nas muitas versões que encontra do romance. A restrição da OuLiPo seria a de escrever um livro autorreferente, composto de vários primeiros capítulos de livros diferentes.

Ítalo Calvino
Ítalo Calvino

Já em O castelo dos destinos cruzados, peregrinos medievais se reúnem ao redor de uma mesa. Emudecidos pela travessia de um bosque, dispõem apenas de um baralho de tarô para contar suas histórias. O narrador se encarrega de interpretá-las a partir da sequência de cartas que o personagem escolhe para ilustrar sua vida. Em O castelo dos destinos cruzados, Calvino simboliza com o tarô a mão de combinações disponível ao enredo de qualquer conto; o tarô como talvez uma das mais antigas máquinas narrativas da Literatura Potencial.

Em Calvino, também, sem perceber, chegamos mais perto dos computadores como máquina-narradora. O universo de possibilidades inegável da OuLiPo confirma sua visão de que uma poesia não vem da Musa inspiradora ou inconsciente coletivo, e sim é exemplar de um espaço amostral titânico, espaço esse suscetível a ser escavado automaticamente à exaustão. Quando tivermos em nossas mãos ferramentas capazes de cuspir todas as histórias possíveis, máquinas capazes de imprimir a biblioteca de Babel, fazer literatura tornará, enfim, na escolha do que ler:

“Várias teorias na estética defenderam que a poesia era questão de uma de inspiração que descia de sabe-se lá que lugar, ou que brotava de sabe-se lá que profundezas, ou então pura intuição, ou outro não identificado momento na vida do espírito, ou a Voz dos Tempos com que o Espírito do Mundo decide falar ao poeta, ou uma reflexão de estruturas sociais que através de um desconhecido fenômeno ótico é projetada na página, ou uma concepção direta da psicologia das profundezas que nos permite servir imagens do inconsciente, tanto individuais como coletivas; ou, na pior das hipóteses, algo intuitivo, imediato, autêntico e amplo que surge sabe-se lá como, algo equivalente ou homólogo a outra coisa, e que a simbolize. Mas nessas teorias sempre houve um vácuo que ninguém soube encher (…) Uma vez que tenhamos desmontado e remontado o processo de composição literária, o momento decisivo da vida literária será o da leitura.”

Cybernetics and Ghosts
The Uses of Literature
Ítalo Calvino

 

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