Os verdadeiros paraísos são os paraísos que perdemos – Marcel Proust e o caminho para a iluminação

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E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, cada emoção é duplicada, e em onde seu livro nos vai agitar como um sonho, mas um sonho mais claro do que aqueles que sonhamos a dormir e cuja lembrança vai durar mais tempo, eis que então ele desencadeia em nós, durante uma hora, todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas dentre elas, jamais nos seriam relevadas, pois a lentidão com que se processam nos impede de percebê-las (assim muda o nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores; mas é uma dor que só conhecemos pela leitura, em imaginação; porque na realidade o coração se transforma do mesmo modo por que se produzem certos fenômenos da natureza, isto é, com tamanho vagar que, embora possamos ver cada um de seus diferentes estados sucessivos, por outro lado escapa-nos a própria sensação de mudança).

Em Busca do Tempo Perdido (do francês À la recherche du temps perdu) é um romance de Marcel Proust, escrito entre 1908-1909 e 1922, e publicada entre 1913 e 1927 em sete volumes , os três últimos postumamente. Esta quarta-feira marca os 100 anos do lançamento do primeiro volume, No Caminho de Swann, o livro que inaugurou uma das obras mais importantes da literatura mundial. Um romance ambicioso, que pretende alcançar a substância do tempo para poder se subtrair de sua lei, a fim de tentar apreender, pela escrita, a essência de uma realidade escondida no inconsciente, recriada pelo pensamento. E também monumental: quase 4000 páginas. Nem sempre os leitores mais vorazes de nossa época conseguem tempo suficiente para lê-lo, e Proust se torna um autor cada vez menos lido, até mesmo no meio acadêmico.

Mas é bobagem! Imaginava que seria uma leitura extremamente difícil, vendo pessoas falarem sobre Proust com tanta cerimônia. Logo ele, um dos autores mais engraçados que conheço. Sim, Proust é muito divertido! Ficava intimidada pela profundidade. Enfim, deixava Em Busca do Tempo Perdido pra depois, e nem preciso fazer um trocadilho infame para ilustrar como me arrependo disso.

Na Busca vamos acompanhar a trajetória do Herói, a descoberta para sua vocação literária. A obra é o próprio resultado dessa descoberta, e através dela o leitor vivencia o processo criativo por meio da obra de arte. Temos uma aprendizagem que se inicia na experiência do Herói – a pessoa exposta as experiências do real-, mas que só se completará na experiência do Narrador – o artista que retira do real a verdade nele oculta . Porém, o Herói tem uma longa trajetória até sua iniciação. Essas experiências ficarão relegadas, por muito tempo, às sombras que  a incapacidade de compreender, ao mesmo tempo em que se vivencia, produzem. Uma epifania que só o tempo traz.

Sete volumes, igual a Harry Potter!

Somos feitos de Tempo

Ler a Busca é conhecer a Paris da belle époque, perscrutar a consciência, desconfiar da realidade;  reconsiderar a experiência do mundo através do filtro estético, livre das amarras da percepção óbvia e imediata; assimilar a identidade como uma sucessão de Eus… Tudo isso enquanto o Tempo, o Hábito e a Memória se combatem e se combinam, ora revelando ora ocultando, e o Narrador investiga os labirintos do conhecimento. Proust, um verdadeiro esteta, parece indiferente à religião ou ciência, e não cogita encontrar nesses dois caminhos alguma resposta que corresponda as suas expectativas. Harold Bloom, em O Cânone Ocidental, observou com precisão:

A Busca é uma obra tão meditativa que transcende os cânones ocidentais de julgamento. Sua têmpera, como lembro ter observado Roger Shattuck, é curiosamente oriental: Proust, o Narrador, e Marcel se fundem na implícita convicção de que jamais estamos plenamente formados, mas continuamos sempre evoluindo lentamente em consciência. Sei que Proust é uma apoteose da cultura francesa, não do pensamento hindu. Talvez (…) o domínio do devaneio pro Proust o tenha levado às fronteiras de uma transformação para dentro.

Curiosamente, o Narrador só se nomeia como Marcel deixando a ressalva de que seria esse seu nome se ele for o autor do livro. O nome Marcel só aparece duas vezes nessa obra enciclopédica! É como se impedisse de pensar em si próprio como um Eu permanente e imutável.

Pois às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência de nosso corpo, semelhante para nós a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as alegrias passadas, todas as nossas dores, estão perpetuamente em nossa possessão.

A arte do riso

Proust é um mestre da tragicomédia. Não são poucas as vezes que ri das maiores desgraças do Narrador, embora sofresse intimamente com elas. O recurso do humor é fundamental, porque permite distanciamento representacional ao explorar a questão da homossexualidade – em parte proibida na época, e tema recorrente da sua obra -, e uma abordagem menos pessoal no Caso Dreyfus e a situação dos Judeus. Também proporciona uma maneira de revisitar a fatos que pareciam tão importantes, os sentimentos mais intensos, através de uma perspectiva mais contemplativa, com uma espécie de conforto retrospectivo. A partir dessa consciência tudo se torna sublimemente ridículo! O autor comparou os homossexuais com judeus, sem se desfazer necessariamente de qualquer um dos grupos. Os tormentos de amor e ciúme transcendem gênero e orientação sexuais. Ele não era antissemita ou homofóbico, embora ele possa parecer rude em relação a um grupo ou outro, o amor que Proust sentia por sua mãe judia era inquestionável. Além do mais, ele teve relações homo afetivas bastante consistentes. Mas o Narrador não é judeu nem homossexual. E embora o autor fosse, só podemos deduzir que é uma escolha que visa dar o tom de distanciamento necessário para falar com justiça em relação a essas questões que lhe eram tão caras. Harold Bloom escreve sobre essa mudança:

A principal preocupação de Proust não é história social, nem liberação sexual, nem o Caso Dreyfus (embora ele fosse, consistentemente, um ativo defensor de Dreyfus). A salvação estética é a missão desse enorme romance; Proust desafia Freud como o maior criador de mitos da Era do Caos. A história que ele cria é uma história de amor visionária, descrevendo como o volume final do livro reforma sua consciência e pode moldar sua vida numa nova forma de sabedoria. Proust julgou acertadamente que o Narrador seria mais eficaz se pudesse assumir uma posição desapaixonada em relação à mitologia que eleva a narrativa ao nível de um poema cosmológico, tão dantesco quanto shakespeariano. Balzac, Stendhal, Flaubert são deixados para trás no salto de Proust para uma visão que mistura Sodoma e Gomorra, Jerusalém e o Éden: três paraísos abandonados. O Narrador, sendo heterossexual gentio, é mais convincente como visionário dessa nova mitologia.

Muito mais que a Madeleine

A Busca é a história de uma descoberta, que o volúvel e preguiçoso Marcel/Narrador perde a esperança de empreender, desacreditando no seu talento para a literatura, envolvido demais com o mundanismo e suas belas meninas em flor. O tema do livro não é a memória, voluntária ou involuntária, como pode parecer no começo da leitura. A memória é apenas um meio de ressituar-se no Tempo, encontrar-se nele. A memória na obra adquire uma função maior que a simples rememoração, ela se torna um instrumento de aprendizado para inteligência, e possibilita ultrapassar os limites das impressões momentâneas, que estão sempre a mercê do Eu em seu estado atual, construindo assim uma análise extratemporal, com um significado mais amplo, completo.

E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família dos fundos; e com a casa, a cidade, da manhã à noite em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.

O trecho é famoso, mas é só a primeira de inúmeras manifestações de memória involuntária que acontece, que farão o narrador pressentir uma realidade, uma verdade, para além da realidade cotidiana. Os hábitos entorpecem a sensibilidade necessária para debruçarmos sobre essas vislumbres de uma outra vida. A madeleine não tem nada de extraordinário em si, ela é um signo, que encerra o significado dessa sensação que traz tanta alegria a Marcel porque ela remete a um tempo que não é o passado, mas que se situa fora do Tempo e está diretamente ligada à eternidade: a comunicação com um eu adormecido. Quando a inteligência e a razão se descuidam, podemos visualizar de relance, preso a qualquer objeto, sabor ou cheiro, uma dessas visões de sonho que conversam diretamente com nosso espírito, que nosso raciocínio não consegue compreender. Se Proust comesse tantas madeleines como a fama do biscoitinho nos faz crer teria morrido de diabetes, e não de asma.

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“Escrevi mais 3450 páginas!”

O confronto da pessoa do artista com sua criação, o fazer artístico, o aprendizado dos signos da arte, podem ser traduzidos num personagem, o de sua musa Albertine Simonet: a figura oscilante e atrevida à beira mar, que irá se destacar aos poucos do grupinho de meninas que tanto perturba Marcel. O ciúme talvez seja o sentimento mais importante de toda a obra. Swann, o amante neurótico que antecede Marcel, acaba até mesmo por se casar com Odette de Crécy, quando não a amava mais, porque o ciúme dura mais que o amor. Os tormentos de amor e ciúme chegam a um nível preocupante, mas para o leitor são primorosamente engraçados. A supervalorização do ser amado, o ciúme sexual, o reconhecimento de que se sofre por uma criatura que – afinal – nem era “seu tipo”, enfim, toda a angústia pode ser ilustrada pelo que considero a ironia mais forte da obra: “Deixem as mulheres bonitas para os homens sem imaginação!”. Proust também disse que, muitas das vezes, só não se aprofunda mais no sofrimento por falta de criatividade. Constatação assombrosa! É uma obra com milhares de personagens, de retratos minuciosos criados por palavras, capazes de resistir ao desbotamento que o tempo provoca na memória. É grande o seu poder de caracterização.

Dentre os que apreciavam objetos de arte, que amavamos versos, contabilizavam os cálculos vis, sonhavam com a honra e o amor, ela formava um minoria superior ao restante da humanidade. Não era preciso que tivessem de fato aqueles gostos, desde que os afirmassem; de um homem que lhe confessara, no jantar, que gostava de andar à toa, de sujar os dedos nas velhas lojas, que nunca seria apreciado por este século mercantil, pois não se preocupava com os interesses desta época e portanto, pertencia a outro tempo, dizia ela ao voltar: “É uma alma adorável, uma pessoa sensível, eu não tinha desconfiado disso!” e sentia por ele uma imensa e repentina amizade. Mas em compensação, aqueles que, como Swann, tinham tais gostos mas não os externavam, deixavam-na indiferente. Certo, era forçada a confessar que Swann não ligava para o dinheiro, mas acrescentava com ar entediado: “Mas no caso dele, é outra coisa”; e, de fato, o que falava à sua imaginação não era a prática do desinteresse, e sim o seu vocabulário.

O confronto com a mortalidade

Sete livros para contar quase nada, ao mesmo tempo que contam tudo. Vinteuil, Elstir, Bergotte, três artistas fictícios que, com sua arte, irão determinar a paisagem dessa viagem do Narrador para dentro de si. Os jantares que duram 300 páginas, os detalhes mais megalomaníacos sobre vestidos. Uma verdadeira educação dos sentidos! Em Busca do Tempo Perdido possui um horizonte infinito de leitura. É maravilhoso acompanhar a descoberta da vocação literária do Narrador. Marcel e Albertine são o enigma do romance, mas não se trata de um romance dos dois apenas. Tampouco é do Narrador, o agora amadurecido Marcel; fantasticamente é o romance de Proust, que não é exatamente nem o Narrador nem Marcel. Mas quando a sabedoria fala com mais força, no volume final o Narrador funde-se imperceptivelmente com o romancista. O livro termina quando começa a ser escrito.

E não pense que você terminou a leitura quando fecha o último volume! Não, você precisa reler tudo novamente. Existe algo nessa Busca que não se torna completo enquanto você não confronta o insight no final com suas primeiras impressões.  Percorrer as páginas desse romance é como ouvir uma melodia pela primeira vez, a Sonata de Vinteuil – tão fictícia, e lindamente descrita na obra, que dá saudades de ouvir uma música que nunca existiu -, onde no primeiro momento, sem a memória, não pode ser apreciada em toda a sua profundidade, mas que à medida que ela retoma aos seus próprios temas, nossa inteligência apreende a beleza que nosso espírito sempre intuiu haver nela. É por isso, detendo a posse dessa revelação, que terminamos a obra com uma imensa vontade de relê-la, para somar impressões mais completas com nossa leitura retrospectiva.

Inegavelmente, com efeito, as páginas que ia escrever, Albertine, sobretudo a Albertine de então, não as teria entendido.. Era porém justamente por isso (e aqui vai um conselho para não viver-se em atmosfera por demais intelectualizada), por ser muito diferente de mim, que me fecundara o sofrimento e, antes dele, pelo esforço de entender alguém tão diverso de mim. Estas páginas, se fosse capaz de compreendê-las, por isso mesmo não as teria inspirado.

Todas as vozes do romance só se unem quando Albertine, sua musa, tem sua importância reconhecida de uma perspectiva literária. O que salva Proust de ser o burguês eternamente ocioso, mundano, esnobe, ciumento e paranoico que poderia ter sido, como aponta Harold Bloom no fim de seu capítulo dedicado ao autor, é um enorme trabalho físico, ao mesmo tempo terapêutico, estético e – que mais poderíamos chamá-lo? – místico. Podemos ouvir finalmente na Busca as reverberações do que podemos comparar à concepção budista chamada de Anatta do eu.

Albertine já não existia; mas, era a pessoa que me havia escondido seus relacionamentos com mulheres, em Balbec, e que imaginava ter conseguido me manter ignorante quanto à questão. Quando consideramos o que há de acontecer conosco após a morte, não é o nosso “eu” vivo que, erroneamente, ao fazê-lo, projetamos? Será mais absurdo, afinal, lamentar que uma mulher que já não existe desconhece ter vindo à tona o que ela fazia seis anos atrás, ou desejar que o público fale bem de nós, daqui a um século, quando estivermos mortos? Se o segundo caso tem mais fundamento que o primeiro, o arrependimento, retrospectivo, do meu ciúme partiu do mesmo erro de visão que produz no homem o desejo da celebridade póstuma. Todavia, se a impressão da natureza solene e irrevogável da minha separação de Albertine, momentaneamente, suplantou a idéia que concebi de suas más ações, a mesma impressão serviu tão-somente para agravá-las, conferindo-lhes um caráter irremediável. Vi a mim mesmo perdido na vida, como em uma praia infinita, onde estava só e onde jamais a encontraria, seguisse eu em qualquer direção.

Uma obra literária que o mundo não deixe voluntariamente morrer. A única imortalidade inquestionável que existe é através da arte. Um artista enfrenta a ansiedade pela sobrevivência como enfrentamos o medo da morte. Até o fim do romance, não necessariamente acreditamos que o Narrador tenha vinho a conhecer uma verdade, mas que, talvez, ele esteja na iminência de alguma coisa.  É em O Tempo Redescoberto, último volume, que o Herói se dá conta de que, graças ao esquecimento, uma recordação nos dá a sensação de respirar um ar novo, mas que não poderia ter esse efeito de renovação se já não houvesse sido respirado antes. O verdadeiro Paraíso. E assim ele desabrocha para o extratemporal. A literatura é maior que a vida. Proust expôs na Busca  sua compreensão sobre o fazer artístico, ao mesmo tempo em que o realiza. Ele quer mais que contar uma história. Para um escritor que acreditava que “a única vida verdadeiramente vivida é a literatura”, podemos imaginar que à pergunta sobre o que é literatura, não há resposta melhor que aquela que se coloca na forma de texto literário. Em Busca do Tempo Perdido leva essa ideia às últimas consequências: sua indagação é ao mesmo tempo resposta. Fascinante!

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“Eu fiz as contas. Se quisermos ler todos os Proust durante a vida, temos que começar amanhã de manhã.”

Quem lê tem que escolher. A vida é muito curta para ler tudo o que importa.

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