Outro conto da vizinha da casa 80 – Desiree Perrone

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E eis que encontro dona Litéria, as margens da praça do condomínio. Empunhava ela um livro de contos do Machado de Assis. A pobre velha estava tão vidrada no livro que nem notou que me aproximei. As crianças em volta, também não notaram a presença dela na praça. Poucos a notavam.

É Machado? Pergunto eu.
Sim. Me responde ela, sem sequer tirar os olhos da pagina aberta.
Ele é demais. Gosto bastante. Digo eu tentando uma aproximação. Em vão.

Dona Litéria estava cega. Devorava as páginas, como uma criança a um sorvete de chocolate. Passei os olhos pelo livro. Dom Casmurro se apresentou. Entendi então o porque de tamanha concentração. Dom Casmurro exigia isso. Dom Casmurro despertava isso.

Duas semanas depois, encontrei dona Litéria, empunhando outra obra. Era outra obra de Machado. Em questão Memórias Póstumas de Brás Cubas. Me aproximei e perguntei a ela. Já terminou Dom Casmurro? Ao que ela me responde sem nenhuma excitação: Sim, e foi uma obra dificil de digerir, os olhos de ressaca de Capitu ainda estão entranhados em mim. Mal pude dormir desde que findei a obra. Durmo e acordo pensando na pobre moça. Tão injustiçada. Seria ela, hoje, essas meninas que vivem a vida intensamente, e eu acho que deve ser assim. No meu tempo, tinhamos que ser recatadas e eu perdi muita vida com isso. Me senti a Capitu. Me vi nela.

Espantada com tamanha descrição, pedi que continuasse. As moças de hoje, possuem muita vida e muita energia, muita vida. Nós em nossa época tambem, mas nao podiamos viver. Eram outros tempos, e estavamos acostumadas com isso. Mas, Capitu, assim como eu, não conseguia se adequar, não conseguia se conformar. Era uma pobre moça querendo apenas viver, amar e ser amada. Como um dia eu fui.

Dona Literia deu uma pausa. Sentiu que desabafou o que estava em seu peito e agora não sabia como agir com o que tinha dito. Um misto de vergonha tomou conta da velha. O silencio apenas era cortado pelos gritos das crianças que ali brincavam. Sem saber muito como lidar com os sentimentos que foram aflorados. Ela terminou nosso dialogo assim: Mas, eram outros tempos. A vida segue. Preciso ir.

Fiquei com o que ela me disse na cabeça. E também sai dali. Quais segredos aquela velhinha solitária escondia? Quantas amarguras trazia no peito? Quantos mais viviam em situações parecidas?

Bom Fim de Semana Leitores!

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