Pais censuram livro paradidático por conteúdo erótico

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Pais de escola mineira assinaram abaixo-assinado contestando a escolha do livro A marca de uma lágrima, de Pedro Bandeira, para ser trabalhado em turma do 6º ano, devido a passagens eróticas
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Até onde os pais devem interferir na educação de seus filhos? E com que critérios? Um caso recente ocorrido no Colégio Santa Maria, em Belo Horizonte, suscita esse tipo de reflexão. Oito pais de alunos do sétimo ano elaboraram um abaixo-assinado contestando a escolha do livro A marca de uma lágrima, de Pedro Bandeira, para ser trabalhada em sala com estudantes na faixa dos 12 anos. Eles alegam que a obra possui conteúdo erótico impróprio para a idade, numa escola de tradição católica. Segundo o texto de reclamação, o romance pode “causar comportamentos irreparáveis, presentes e futuros” nos alunos, que ainda estão na “idade de brincar”.
Ainda não ficou claro se a escola acatará o pedido de exclusão do livro da grade curricular. A direção respondeu apenas que sempre renova o material utilizado em sala, de acordo com a necessidade programática e a avaliação da comunidade interna. Duas professoras entrevistadas pelo O Tempo defenderam a escolha da obra. Mônica Correia, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que o critério para a adoção de um livro paradidático deve ser a competência leitora do público, e não a idade. Carolina Santana, professora de literatura da Faculdade de Educação do UniBH, avalia a pertinência do tema do romance, que trata de questões próprias do universo adolescente, como a questão da autoestima.
Publicada em 1985, A marca de uma lágrima obteve o prêmio de Melhor Livro Juvenil pela Associação Paulista de Críticos de Arte no ano seguinte. Releitura do clássico Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostad, a trama gira em torno de um triângulo amoroso formado por três jovens na faixa dos 14 anos: Isabel é apaixonada pelo primo Cristiano, que, por sua vez, ama Rosana, a melhor amiga dela. Isabel, que sofre de baixa autoestima, resolve então se declarar ao rapaz por meio de cartas assinadas por Rosana. Algumas passagens mais “picantes” das cartas, segundo a alegação dos pais descontentes, podem ser conferidas nos trechos:

“Não conseguia lembrar-se do primo em meio às pálidas recordações dos garotos de sua infância. Teria sido aquele que se divertia batendo nos menores? Ou seria aquele outro que teimava em tirar sua calcinha? — Quer tirar minha calcinha agora, Cristiano?”

“Não seriam atraentes aqueles pequeninos seios que muito bem poderiam ter servido de fôrma para taças de champanhe? ‘Vem, Cristiano, tomar do meu champanhe… Vem me buscar inteirinha, Cristiano…’”

“Ai, cobra e aranha, aranha e cobra, a aranha quer a cobra, a cobra busca a aranha, a aranha se debate na gaiola de vidro, vai quebrar-se o vidro, já vem vindo a cobra, vem, Cristiano, me abraça, me enlaça, me arregaça, me enleia, tateia, procura, me aperta, me pega, me toma, te amo, sou sua, estou nua, te quero, te pego, te levo comigo, me leva contigo, me faz viver, me faz feliz, me faz mulher!”

A Editora Moderna, responsável pela publicação da obra de Pedro Bandeira, se manifestou ponderando que os trechos estão inseridos em seu devido contexto, já que a personagem idealiza o primeiro amor, e que a obra tem como público-alvo jovens por volta dos 12 anos. No site da notícia, diversas pessoas comentaram em defesa da obra, com argumentos em respeito à escolha da instituição, que obedece a critérios pedagógicos, e depoimentos pessoais de leitores do romance no início da adolescência, confessando como o tratamento sensível do tema ajudou a lidar com situações dessa fase de vida.
Em setembro de 2015, um caso semelhante ocorreu com uma adaptação em HQ de Oliver Twist. Pais de alunos do sexto ano de uma escola particular paulista reclamaram do uso de palavrões nos quadrinhos trabalhados em sala. A notícia foi inclusive discutida no site do Homo Literatus.
Excesso de preocupação ou de hipocrisia? Acompanhamento escolar ou falta de confiança na competência dos professores? Afinal, a literatura não deve tratar de questões importantes para a vida, com os recursos estéticos apropriados? A escola não deve propor debates interessantes, de assuntos que façam parte da realidade dos alunos? Há algo de tão chocante sobre o sexo, num livro de 1985, que não possa ser visto na Internet ou mesmo numa cena de novela das 21 horas?
Em época de propostas como Escola sem Partido (sem o partido da oposição, bem entendido), é preciso refletir sobre quão conservadora nossa sociedade permanece. Basta desse falso moralismo burguês, que impede a construção de uma mentalidade crítica rechaçando a discussão produtiva. Uma geração que “já nasce sabendo de tudo”, como dizem, cada vez mais ágil, dinâmica, mesmo precoce, parece ter sim a maturidade adequada para a leitura de obras como a de Pedro Bandeira.
Os pais não deveriam subestimar a capacidade de elaboração subjetiva de seus filhos. Talvez devessem eles mesmos ler mais, formar maior consciência sobre as coisas ao redor, para não perpetuar a ignorância. Porque, num ponto, os autores do abaixo-assinado na escola mineira têm razão. A literatura pode “causar comportamentos irreparáveis, presentes e futuros” na vida dos jovens. Ao final de cada leitura, jamais somos os mesmos. Adquirimos autonomia suficiente para lidar com a realidade e tomar decisões com mais segurança. E isso só pode incomodar quem é contra a mudança e o amadurecimento, quem deseja manter as aparências de um mundo sem conflito, interno ou externo, um mundo de robôs programados para obedecer sem contestar. É esse o ensino que você quer para os seus filhos, técnico e descartável, sujeito a temas proibidos em nome “da moral e dos bons costumes”? Então assine embaixo e assuma os riscos.

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