Entre a realidade e o delírio, a memória e a ficção, o livro de Claudia Nina guia o leitor pela tênue linha que separa o sentimento de exclusão e a certeza apavorante de não se encaixar em nenhum mundo
Paisagem de porcelana, de Claudia Nina, é um livro delirante. No sentido literal da palavra. O leitor se movimenta o tempo todo num espaço vago entre realidade e delírio, no limiar de um mundo interior virado ao avesso: o labirinto das lembranças “em golfadas” de Helena, a protagonista.
A estória começa pelo fim: após um acidente que põe termo a uma viagem pelo exterior, a narradora protagonista junta os cacos da memória na intenção de remontar o quebra-cabeça do passado – “O passado está dividido em mil pequenas peças” – e retomar um fio perdido que nos guiará pela narração. Será o relato de uma longa e desesperadora viagem pelo eu através do outro (ou vice versa), sem mapas ou bússolas. A trajetória de uma jovem que sai do país somente com o que pode carregar na esperança de encontrar algo que não busca. E acaba perdendo-se.
Viaja para a Holanda, “um país sem montanhas” onde “as quedas são metafísicas”. O céu é cinza como o interior das casas, os holandeses são impermeáveis à chuva e às palavras, e assim a cidade dos canais concêntricos centrifugam Helena para fora de seus círculos e a ela só resta girar em torno de si mesma. Até que cai, desmorona “em um destroçamento de camadas internas, silenciosamente.”
E é só muitos anos depois que se põe a colar os cacos daquela imagem à qual faltam peças, uma experiência dolorosa demais para a memória, que embaralha lembranças reais e inventadas. O leitor é guiado pela tênue linha que separa o sentimento de exclusão e a certeza apavorante de não se encaixar em nenhum mundo.
Claudia Nina revela-se uma grande pintora: suas imagens traçam com nitidez a falta de nitidez, o desfoco, o turvo, o tremido. É preciso mesmo maestria para pintar o feio de forma tão bela e pungente.
Apesar do foco no interior da personagem, o texto nunca se perde em hipersensibilidades egocêntricas porque o eu nunca é só aquele que narra, mas sempre um pouco ou muito o outro, como ponto de identificação e fuga. A prosa poética é cortante. A tensão da escrita é o mata-borrão do desespero da personagem, mas a autora nunca solta a rédea da composição literária, mesmo quando a narração parecer girar em torno de si mesma. Sabe deixar a trama suspensa, criando a expectativa permanente de que algo vai acontecer, o que não deixa o leitor largar o livro.
Muito bem elaborada a sutileza do metadiscurso emparelhando com as lacunas e discrepâncias da memória de Helena. Por exemplo: nas versões contraditórias do primeiro encontro com Ernest, o namorado. Ou nas duas variantes da situação final: a um tempo, linha de partida, chegada e descomeço. Ou nos momentos em que descamba para o fantástico, como quando o amado se transforma num javali: o monstro como projeção da inatingibilidade do outro. Aqui vemos o coelho sair da cartola, a escrita na escrita, a tentativa de recuperar uma realidade pela sua (re)invenção.
Desse prisma, a amnésia da protagonista é o grande achado e a chave para a expansão da memória através da narração, embaçando as imagens, misturando as cores do real com as do imaginário. A verdade se acomoda entre ficção e ficção.
Paisagem de porcelana é um livro caleidoscópico para se reler algumas vezes. Cada leitura revelará uma nova imagem. Porque, graças à perfídia da memória, sempre há muitas estórias reais a serem inventadas e muita ficção para ser vivida.