Pão com breguedefe ou a receita do bagulho da linguagem

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Um redator pode ficar meio paranoico quando sai do carrossel da linguagem escrita e se confunde com as linguagens da rua

SP

Quando minha máquina do tempo voltar do conserto, vou viajar para o Rio de Janeiro lá de 1940 ou 1950, procurar meu paranoico favorito e o trazer à nossa época. E quero sua presença e seu olhar sem máscaras, deixando o disfarce autoimposto por lá. Sergio Porto, também conhecido por Stanislaw Ponte Preta, talvez se divirta um pouco aqui.
Posso ousar isso mesmo sabendo do tom melancólico de alguns textos seus, mas tenho comigo que um cronista melancólico é um péssimo mentiroso. Se até Carlos Drummond de Andrade, da Itabira onde as pessoas tinham ferro nas veias em vez de sangue, nos deixou um punhado de crônicas onde podemos (também) rir, quem sabe o carioca Porto tope com alguma estranheza simpática às suas paranoias.

Não zombo dele como paranoico só por deboche. Quase todos que leem – sei lá o que, de fantasia a romance e crônica – e gostam da produção de alguém, tratam-no feito um velho amigo, e aí vale um convite para cafés suspeitos e provocações de toda sorte. O autor me olharia de cara feia ao ser chamado assim, e não imagino quais argumentos usaria para se defender – ou para me dar uma bronca por não entender suas ideias.

Eu poderia mostrar o bairro onde moro há anos e compará-lo com suas faces antigas, fotografadas em jornal online, ou de um impresso emprestado da biblioteca para não chocar demais o carioca do século passado ao falar da internet, e mostrar como o sentimento dele com as mudanças de seu bairro e o meu e de mais curitibanos é o mesmo, correm os anos e o estranhamento com os contornos retos e cinzas das metrópoles é o mesmo. Eu me obrigaria a levá-lo em uma boa cafeteria, pois o autor enfatizou o quanto detestava o café carioca e um expresso decente não o faria mal, a menos que avacalhar com a bebida de lá tenha sido artimanha de cronista. Mas ambas ações não se comparam a servi-lo as iguarias da nossa época.

Poderia levar Sergio Porto a uma lanchonete de rua onde servem pão com breguedefe, dessas onde às vezes a gente ouve o indiscreto público falando da vida e pedindo treco de coisar atrás do negócio enquanto anotam a receita do bagulho no pulso. Comida de gente distinta (feito nós), jeito de subornar o estômago para fingirmos ter uma refeição (boa?) no corre-corre.

O carioca iria surtar. Uma de suas melhores crônicas é dedicada ao Latricério, o porteiro sabichão do prédio onde Porto morou. Segundo ele o porteiro era bem intencionado, mas falava de um jeito difícil e tinha “erros só seus”: conferia se as janelas estavam aritmeticamente fechadas, via problemas ‘nos cano de orige’ do edifício, avisava que chegaram os homens que vieram ‘avaloá as impoteca’, peça rara o tal do Latricério.

Sérgio contou ter ‘aprendido’ a falar desse jeito para tentar se entender melhor com ele, talvez rendesse mais do que tentar corrigir. Um redator pode ficar meio paranoico quando sai do carrossel da linguagem escrita e se confunde com as linguagens da rua, que não pedem licença e atropelam os estudos e cerimônias da escrita. Entendo uma migalha da paranoia de Sérgio Porto, também preciso de um segundo extra para voltar à Terra quando ouço iguarias feito pão com breguedefe.Enquanto minha máquina do tempo não volta do ferro-velho, bebo mais uma xícara de café e me convenço de que há um pouco do Latricério em todos nós.

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