Ao longo da narrativa de Olhar sobre o passado, Wassily Kandinsky busca seu tempo perdido, refazendo memórias e criando novos caminhos para explicar suas decisões enquanto pintor.
A clássica passagem do bolinho madalena e o delicioso remetimento ao passado através de seu sabor, que Proust descreve em Em busca do tempo perdido, ainda é lembrada em tantas obras e citações relativas ao ativamento da memória, das sensações e das imagens que nos levam mentalmente a outro lugar — mesmo que uma lembrança não exata, já que nunca é mesmo. Uma outra figura modernista, o pintor russo Wassily Kandinsky, assim como o escritor francês, mantinha fixa uma imagem de seus tempos de criança: lembrava de pintar um cavalo com sua tia, assumidamente importante figura em sua formação artística, e do trauma que viveu ao querer retratar com preciosismo o animal, mas ao aplicar preto puro para os cascos, deparou-se com quatro manchas “repugnantes e completamente estranhas ao papel”.
Kandinsky ilustra momentos marcantes em sua formação pessoal e profissional da infância e da adolescência no livro Olhar sobre o passado, com a maestria metafórica que já lhe é atribuída — e bem conhecida — pelos seus quadros. Pois além de pintor, fazia poesia e belos relatos e textos teóricos — que, mesmo estes, não tinham exatamente aquela pegada de “objetividade” que se espera. Até nestes ele tratava de enfiar poesia — leia-se: metáfora.
A figura do cavalo se apresenta em vários trabalhos do pintor, e no livro ele cita o animal diversas vezes. A primeira é logo no início do texto. Ao longo da narrativa de Olhar sobre o passado, um relato essencial para compreender sua figura, Kandinsky busca ele mesmo seu tempo perdido, refazendo memórias e criando novos caminhos para explicar suas decisões enquanto pintor, já que usaria o livro, publicado em alemão em 1913, como uma grande resposta a duras críticas recebidas a partir de 1909, que iam de provocações ao seu trabalho como “pseudo-arte” a incompreensões sobre suas investidas teóricas com relação à pintura e sua própria experiência com ela.
Atualmente em circuito de exposição pelos CCBBs de quatro estados no Brasil, as obras de Kandinsky manifestam a renúncia ao objeto reconhecível, o que ele também se preza a explicitar em Olhar: além de compartilhar acontecimentos da infância e de seu período de estudos em Moscou, Kandinsky faz observações gerais sobre seu trabalho, onde chega a contar um caso em que, uma noite, ao apoiar um de seus quadros em seu ateliê em Munique, descobre no quadro “uma beleza indescritível”. Chega a chamá-lo, como que o conhecendo de novo, de “quadro misterioso”. E então segue uma frase que não só serve como justificativa aos maus críticos como uma inebriante demonstração de experiência e descoberta sobre o abstrato: “Agora eu tinha certeza, o objeto prejudicava meus quadros.”
O processo de metaforização dos objetos é explicado por Kandinsky a partir de suas percepções desde pequeno sobre as cores, que estariam mais vivas em sua memória do que os próprios objetos que portavam as tais cores; sobre as viagens, a arquitetura e a natureza (também da natureza das coisas). É possível dizer que é com alguma emoção que descreve a sensação de ver a tinta sair do tubo que comprou, aos treze anos, com o dinheiro que juntou com dificuldade. Segue no trecho uma longa sequência de adjetivos, reforçando o trato poético com que Kandinsky também lidava com as palavras, não apenas com as cores. Essa, aliás, é outra faceta descoberta pelo pintor que ele busca enfatizar em Olhar. Mesmo quando a pintura não era ainda atividade exclusiva em sua vida, já possuía a inquietação de retratar as forças das cores de tudo isso que apreendia. Vai construindo, em Olhar sobre o passado, uma condução narrativa envolvente que leva o leitor a entender como chegou, por exemplo, a conclusão de que o que queria fazer era proporcionar em seus quadros uma aura que provocasse um auto-esquecimento nos espectadores.
Poucos saberiam entrar nessa disputa de ego no contexto vanguardista em que se situava com tamanha sinceridade e habilidade poética. E mesmo para quem não gosta ou desconhece o trabalho de Kandinsky, vale a leitura. Ele deixa belos aprendizados de busca interior e dedicação ao trabalho, dois pontos não necessariamente separados em sua vida, em um tipo de escrita que escapa à esmagadora maioria dos teóricos, seja do campo da arte ou não. Assim, ele finaliza: “Em muitas coisas devo reconhecer que errei, mas há uma à qual sempre permaneci fiel… a voz interior que fixou meu objetivo na arte e que espero seguir até a derradeira hora.”