Dois passes livres para os camarins dos shows – Contos do Rock, sobre o rock brasileiro, e Zappa Detritos Cósmicos, sobre Frank Zappa
Para gente que ouve música na mesma frequência com que lê, um livro sobre uma banda é passe livre para os camarins. Pode ser aquele álbum tão marcante, acompanhar um pedaço de uma turnê, descobrir a origem de uma ideia bem executada – dessas que nem o músico imaginaria que daria tão certo enquanto a compôs. E também uma chance de rir dos músicos e com eles, longe dos holofotes e pedestais, porque no fundo aquela banda tão admirada é feita por gente ridícula e neurótica que nem a gente (se não até mais).
A partir disso, esse texto apresenta livros com narrativas sobre músicos ligados ao Rock. Nem sempre diretamente sobre músicas, às vezes a deixando em segundo plano enquanto uma pessoa fala ou é retratada. Se essa seleção subjetiva é só desculpa para tomar outra cerveja ou vale uma conversa nos bastidores, é com você.
Os músicos por eles mesmos – os camarins e os momentos ridículos da música
Contos dos Rock – Organização Daniel Ferro – Editora Dublinense – 2017
O livro nasceu a partir de um recorte do programa Contos do Rock, exibido no canal Multishow durante dois anos. A ideia do Daniel Ferro, idealizador do programa e o principal responsável por ele, era contar os bastidores do Rock nacional pelos músicos brasileiros. Sem filtro nem bajulação, nem destaque demais para um ou
outro. Apenas os contos.
Temos Andreas Kisser falando de uma turnê do Sepultura em um lugar onde a banda nem sabia ter ouvintes, praticamente uma expedição para outra galáxia. O Canisso contando a origem da capa do Lavô tá novo, um conto bem a cara dos Raimundos. O Nasi brigando por um disco de ouro do Ira!, a Pitty contando de um rolo da banda dela em pleno show do Red Hot Chili Peppers, a Fernanda Takai falando de um show que o Pato Fu fez e nem sabe se recebeu a outra metade da grana.
Também há contos que, involuntariamente, vão além do riso e dos camarins. A história contada por um membro do Cachorro Grande é curiosa, pois ao mesmo tempo em que entrega uma face do mercado musical, quem não suporta essa banda pode se perguntar quem ela é para brigar por um nome original de um álbum. O produtor Rick Bonadio fala sobre um Charlie Brown Jr. que ele nem sabia se daria certo, tanto pela música, ainda em sua forma embrionária, quanto pelo comércio de singles da época – e a banda quase não teve a forma que conhecemos. O Phillipe Seabra não está nem aí para a romantização do Rock, uma das muitas coisas ditas (e não ditas) quando fala do primeiro show de uma banda que estava começando, ali no tempo da Plebe Rude – uma bandinha chamada Legião Urbana. A Érika Martins, que cantou na A Mais Pedida, participou de alguns shows dos Raimundos e conta de como era a educação do público, especialmente quando ele passa de quem faz a piada para alvo dela.
A coletânea Contos do Rock tem o que você procurar, desde histórias ridículas a camarins de shows e contos da indústria. Só depende de por onde você vai entrar, gostando ou não de quem estiver nele – e às vezes até aqueles cuja produção não te diga nada podem ter uma boa narrativa.
Camarins, acordes tortos e pancadaria humorística – envelhecendo com Frank Zappa
Zappa Detritos Cósmicos – Organização Fábio Massari – Editora Conrad – 2007
Frank Zappa foi tantas coisas musicalmente que a melhor definição é chama-lo pelo sobrenome. Rock, jazz, música erudita, tanto faz; na cabeça dele, as definições eram secundárias e não precisava existir divisão entre o público de cada gênero. Parte disso está em Zappa Detritos Cósmicos, seleta de depoimentos sobre a carreira dele – e tudo o que o definia. Foi desses de quem é impossível dissociar pessoa da obra.
Ele detonou os hippies, se candidatou politicamente (e ainda disse que não seria pior do que seus antecessores), brigou com quem censurou um álbum seu que sequer tinha letras, catapultou a ideia de álbuns conceituais e camuflou a seriedade com seu humor. Deve ser por isso que sua produção estupidamente vasta dialoga com tantas vozes distintas. Foram mais de 50 álbuns em vida, uma coleção de póstumos, e apenas coletâneas temáticas de shows de 1986 até 1993, anos de seu último inédito e de sua morte.
As entrevistas contidas nesse livro são quase perfis de Frank Zappa, que se complementam devido à temática. Ambas explicitam que ele não era dado às respostas fáceis nem ao puxa-saquismo de camarim, o quanto exigia até de quem o entrevistasse ou resenhasse um de seus álbuns. Também deixam clara sua dedicação à música, sua coerência e criatividade, à maneira de livros que recompensam na mesma proporção da exigência. Zappa criava, reinterpretava e se achasse necessário até arregaçava sua própria música, embaralhando suas referências sem as entregar mastigadas à plateia.
A outra parte do livro é uma coletânea de depoimentos sobre a música dele. Ela é tão dissonante quanto as múltiplas vozes de sua produção. Tem uma história de como um pôster do bigodudo foi parar em uma novela da Globo; lemos Kid Vinil, Thunderbird e outros contando, indiretamente, sobre terem envelhecido com Zappa. Há uma conversa com um tom crítico envolvendo ele e Yoko Ono, um resumo visual do Zappa pelo traço do Caco Galhardo, tem a Clara Averbuck ligando família e sistema solar ao surrealismo do músico.
E também há depoimentos excessivamente herméticos, como se o autor estivesse mais ocupado citando suas referências do que focado em falar da música, além de alguns que se resumem a paixonites adolescentes. Isso passa longe de estragar o resultado desse Detritos, mais terrestres do que cósmicos – até a parte mais tosca do livro reflete um pouco da música. É que nem ler um livrão hoje clássico por causa do estilo enredo e tudo o mais, se empolgar com um capítulo e, no seguinte, se perguntar se o capítulo em questão é necessário mesmo, se não é mero olha-o-que-eu-sei-fazer com a técnica. O tipo de obra da qual ninguém fica impune, que força o raciocínio e até uma posição, e sempre traz uma novidade após explorar aquela camada de sempre. Assim é a música de Frank Zappa.