Paul Auster, a invisibilidade e a desordem interior

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De acordo com o escritor Paul Auster, “[…] somente na cidade moderna pode o observador permanecer invisível, assumir sua posição no espaço e, não obstante, permanecer transparente.”

PAULAUSTER
Paul Auster, autor do livro “Invisível”

Paul Auster é um autor que dispensa maiores apresentações, uma vez que tem vários livros publicados e um “séquito” de leitores que o veneram, e com toda a razão. Mas, de qualquer maneira, voilà: Auster é norte-americano de Newark, Nova Jérsei, autor de mais de 20 títulos, incluindo obras de não-ficção, além de ser tradutor. Sem dúvida, seu romance mais famoso é Trilogia de Nova York, livro publicado em 1987. Depois da Trilogia vieram muitos outros. Diversas histórias de Auster merecem resenhas e comentários, mas o presente texto deter-se-á em seu penúltimo livro, Invisível, publicado em 2010.

Esta obra narra em quatro capítulos a trajetória do atormentado aspirante a escritor Adam Walker. Grande parte da história é ambientada em Nova York, além de ter algumas passagens por Paris. O romance apresenta mais de um narrador, contudo, essa variação narrativa não interfere no entendimento dos fatos; muito pelo contrário, esse recurso dá mais ritmo à ficção e uma melhor compreensão a respeito da personalidade do protagonista. No capítulo I, há o “itinerário” detalhado do jovem Adam, estudante de Literatura da Universidade de Columbia, no ano de 1967. A aparente vida pacata do narrador começa a ganhar novos contornos quando conhece, numa festa, um excêntrico casal: Rudolf Born e Margot. Todo o primeiro capítulo centra-se na relação desse trio. O leitor acompanhará as angústias e incertezas de Adam e as estranhas atitudes do professor Rudolf Born. Só para elencar algumas, eis: sarcasmo extremado, acessos de fúria gratuitos e insinuações para que Adam tenha um caso amoroso com sua companheira Margot:

“Devo então supor que, se Margot se jogasse em cima de você e pedisse para transar com ela, não estaria interessado? É o que está me dizendo? Pobre Margot. Você não tem ideia de como feriu seus sentimentos.” (página 39)

À medida que a convivência de Walker e Born estreita-se, mais o estudante conclui que Rudolf é sinistro, inconstante e, até mesmo, perigoso. É o que o protagonista e o leitor constatam quando, numa passagem, há indícios de que o professor Born tenha matado, sem motivo, um jovem ladrão:

“Naquela tarde, a última edição do New York Post informava que o corpo de Cedric Williams, de dezoito anos, fora encontrado no Riverside Park, com mais de doze ferimentos a faca na barriga e no peito. Em minha mente, não havia dúvida de que Born era o responsável. No momento em que eu o deixara para telefonar chamando uma ambulância, ele pegara Williams, que se esvaía em sangue, e o levara ao parque a fim de terminar o trabalho que tinha começado na calçada.” (página 64)

A amizade só sobrevivera, até então, por um único motivo: o projeto dos dois de lançarem uma revista literária. A partir da morte do ladrão, Walker fica horrorizado com a personalidade macabra de Rudolf e o denuncia para a polícia. A atitude, porém, é um tanto inconsequente e tardia, uma vez que Adam não tem provas do possível homicídio e também pelo fato de o professor ter retornado a Paris.

Em seguida há um “corte narrativo”. Born e Margot retornam à história somente no terceiro capítulo. No capítulo dois, o leitor mergulhará profundamente na vida de Adam Walker. Nele, teremos informações do passado mais remoto do protagonista que, no corrente ano de 2007, é um homem sexagenário. Instigantes passagens serão narradas através de correspondências que o velho Walker envia para o amigo Jim, um colega do tempo da Universidade. O protagonista escreve uma espécie de autobiografia, dividida em duas partes: Verão e Outono. Nessas memórias, para uma provável publicação póstuma, Walker fala de suas angústias, de suas culpas e de seus sonhos que não se realizaram. Este homem, agora velho e acometido pela leucemia, confessa até o inconfessável: sua relação incestuosa com a irmã Gwyn. Lê-se:

“Era a primeira oportunidade que você tinha de dizer a Gwyn como a amava, de dizer como a achava linda, de empurrar sua língua para dentro da boca de Gwyn e beijá-la como sonhava fazer havia meses. Você estrava tremendo quando tirou as roupas, tremia da cabeça aos pés quando se esgueirou para a cama e sentiu os braços dela se fecharem apertados em volta de você.” ( página 108)

Walker comenta sobre o efeito devastador que a morte do irmão mais novo provocou na família, levando a mãe à depressão e o pai ao alheamento. Lembra do quanto a invisibilidade do irmão morto era combatida, mesmo anos após a sua morte:

“Todo o ano, desde a morte de seu irmão, você e sua irmã comemoram a morte dele. Só vocês dois, sem pais nem parentes nem nenhum convidado… […] É tempo demasiado. O espaço continua aumentando.O tempo continua aumentando, e a cada minuto ele se afasta mais, vai para longe de nós.” (páginas 124, 129)

Após uma avalanche de revelações, as personagens Born e Margot retornam à narrativa, também através de uma ótica memorialística de Walker. Adam fala sobre um reencontro do trio em Paris, das tramas e das surpreendentes reviravoltas na vida dos três.
Cabe informar que Invisível recebeu boas críticas, mas não escapou da língua ferina de alguns. Uma possível recepção negativa do livro se deve, provavelmente, à temática do incesto, detalhadamente narrada no romance. Sobre o tema tabu, Auster comentou: “Eu quis descrever o amor entre eles da forma mais honesta e bonita possível e fui até o fim”. ( Jornal O Globo) Uma das análises mais pesadas foi do crítico James Wood, da revista literária The New York. Ele diz: “Paul Auster é provavelmente o romancista pós-moderno mais conhecido dos Estados Unidos. Ele compartilha do gosto moderno e pós-moderno pelo uso de clichês e pelo empréstimo de linguagens, mas não faz nada com o clichê exceto usá-lo.”

Na obra há elementos recorrentes de outros livros do autor, como os jogos narrativos, o ambiente, a questão da metalinguagem, do homem atormentado, do crime… mas a história está longe de ser clichê pelo clichê ou ruim. Auster aprofundou-se no interior das personagens. Invisível é basicamente uma história de culpa, de invisibilidade no caos, de expectativas e da não realização das mesmas. Altamente recomendável.

 

Referências:
AUSTER, Paul. A arte da fome. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.
AUSTER, Paul. Invisível. São Paulo: Cia das Letras, 2010.
WOOD, James. Shallow Graves/The novels of Paul Auster. Disponível aqui!
FREITAS, Guilherme, Novo romance de Paul Auster explora tabu do incesto e mostra personagens com identidade instável. Portal O Globo. Disponível aqui!

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