O livro Veronika decide morrer, de Paulo Coelho, apresenta-se como um manual de como não escrever um romance
Dificilmente eu abandono um livro. Sempre acho que alguma coisa pode salvar a obra toda e eu termino a leitura. Foi assim que descobri, enfrentando os meus preconceitos em relação aos best-sellers, encontrar coisas interessantes que estavam dentro de obras que eram consideradas “apenas” mercadológicas, com um modelo formatado pensando muito mais nas vendas do que propriamente no conteúdo. Foi assim que encontrei coisas interessantes em John Green, por exemplo, em Quem é você, Alaska, ou o Deuses americanos do Neil Gaiman.
Nessa perspectiva resolvi voltar a ler Paulo Coelho. Há alguns anos, li O Alquimista e tinha achado a história um pouco fraca, mas não tinha argumentos pra dizer que o Paulo Coelho, esse escritor lido e relido internacionalmente, não era bom assim. Não sei se tenho agora, mas resolvi falar. Recentemente, não sei se por desafiar essa visão de cabresto que a gente se impõe ou se tentado pelas novas edições de seus livros (esse fetiche pela capa e bela edição que me consome), decidi encarar o Veronika decide morrer, que virou até filme. E aí decidi escrever essa resenha.
Normalmente eu detesto essa gente que prefere passar a vida falando mal das coisas que não gosta do que propriamente elogiando as coisas. Os haters preferem passar a vida a falar mal do Los Hermanos, por exemplo, ao invés de postar um vídeo de alguma banda nova bacanuda pra gente conhecer. Mas dessa vez não pude deixar de endossar o coro dos “mimimis”. O romance é ruim demais e acho conveniente falar sobre ele.
Descobri que a academia não é reticente ao Paul Rabbit (“Pól” Lapin para os íntimos) por fama ou qualquer outra coisa. Entendo que a academia tenha um certo receio ao mainstream (ela tem lá suas razões), mas em relação ao Paulo Coelho não é birra ou medo de “contaminação”. O cara é ruim mesmo, pelo menos nesse livro.
O começo da história até que vai bem, não é de todo ruim porque essa Veronika, personagem principal que mora em Liubliana na Eslovênia, não vê sentido na vida e decide se matar. Até aí tudo bem, uma coisa que pode acontecer e pode ser um mote para uma boa história. Aliás, existem sempre boas histórias. No fundo, quase todas as histórias são boas. Mas uma pergunta me fica: ela é bem escrita? Quando se fala de literatura, ao menos a meu ver, não se deve falar apenas que uma história é boa, mas se ela é bem escrita. Talvez o que ela fale valha menos do que como ela é contada.
Enfim, a história começa com a personagem principal não vendo mais sentido na vida e tentando se matar. Narrativamente nada ruim nisso. Porém, por conta dessa tentativa de suicídio, os pais acham que ela é louca e a internam em uma espécie de hospício. Não há preocupação alguma com o estado da filha. Ela é simplesmente internada. Talvez possa parecer plausível alguém que aja assim, tudo bem. O que não cola é que os pais, depois disso, somem do livro, não aparecem mais. São pontas soltas, abandonadas.
No primeiro dia de internamento, Veronika descobre que a tentativa de suicídio afetou o coração e ela tem apenas uma semana de vida. Porém, a situação é estranhíssima. Ela vive normalmente, sai para passear no parque que está dentro das instalações desse hospício, conversa com todo mundo, praticamente não sente palpitações no peito, não precisa ficar deitada em uma cama. Se a pessoa está com um grave problema cardíaco e tem previsão de apenas uma semana de vida, como ela pode agir normalmente como alguém que não tivesse doença alguma? No mínimo, a situação exigiria cautela, repouso. Visualizo uma pessoa com esse problema na cama, sofrendo por um problema em um dos órgãos mais essenciais do nosso corpo. Para mim não fez sentido algum.
Veronika conversa com alguns personagens: o médico responsável por cuidar dela, uma mulher que tinha crise de pânico e foi internada nesse mesmo manicômio (que aceita de tudo, de pessoas com crise de pânico a doentes do coração), uma mulher que aceitou a loucura e uma enfermeira. Conhece também um rapaz, chamado Eduard, que tem uma patologia que é uma espécie de esquizofrênico com autista. Ou pelo menos finge uma patologia, já que prefere, conscientemente, fechar-se no seu mundo a ter que falar com pessoas.
A relação desses dois é interessante para os argumentos que dou. Tocando piano, ao mesmo tempo em que é olhada pelo olhar perdido de Eduard (que no fundo não a olha, apenas fixa os olhos em um ponto qualquer, perdido nas elucubrações de sua cabeça), ela se apaixona automaticamente. Pouco depois ela o conduz a uma sala e, diante dele, tira a roupa e se masturba. Fiquei sem entender a cena. Não que eu seja pudico, quem leu os meus textos sabe que é na verdade o contrário, mas para mim a cena não fez sentido algum.
Mais ou menos nesse mesmo momento, sabemos que Veronika decide então, sabendo que vai em breve morrer, fazer tudo o que sempre quis fazer. Mas antes de se suicidar ela mesma tinha chegado à conclusão de que nada valia a pena, que os seus sonhos não faziam sentido, que a vida não tinha sentido. Por isso a tentativa de suicídio. A proximidade da morte não fez com que ela fosse atrás dos sonhos da primeira vez. Agora, na proximidade de uma morte diferente, tem uma epifania que faz com que ela tente correr atrás dos sonhos? Achei contraditório. E esse amor que ela descobre sentir por Eduard é um amor que brota, que salva, de uma pieguice sem tamanho? Muito atrelado ao senso comum do amor.
Outra cena estranha. Eduard de repente decide que também quer viver a vida, aproveitar tudo o que ela oferece. Nessa perspectiva decide ir falar com Veronika, que nesse momento já tem menos de vinte e quatro horas de vida, e dizer que a ama, e convidá-la para fugir com ele (ação cristalizada e clichê das histórias de amor). Os enfermeiros, porém, proíbem que Eduard a veja. Veronika escuta os gritos do rapaz e vem ao seu auxílio. O resto da cena é difícil de descrever. Os enfermeiros, que querem medicar Eduard, pois este está aos gritos, param de tentar controlá-lo quando Veronika chega. O encontro só não parece cena de filme barato porque a cena se transforma em algo ainda mais bizarro. Eduard decide ir voluntariamente a uma sessão de tortura feita pelos enfermeiros. Não consegui entender a lógica. Se os enfermeiros estavam tentando acalmá-lo com uma injeção de calmante – e ele se acalma com a chegada de Veronika – o que tem a ver a tal da sessão de tortura (espécie de lobotomia ou algo parecido)? A cena toda é equivocada.
Os diálogos são mal construídos, soam falsos, são antinaturais, vão do nonsense ao clichê. Muitas cenas não fazem sentido, há contradições internas que comprometem a verossimilhança. O romance não convence. O fim é ainda mais clichê, pois era tudo uma farsa. Veronika não tinha doença nenhuma no coração. Ela fazia parte de um experimento de um médico. Ela fugiu do manicômio sem saber que não estava doente e, sobrevivendo, consideraria cada dia um “milagre”. Essa é mensagem final de um livro, quase que uma moral que deve ser seguida. Vi a mesma coisa em O alquimista.
Corro o risco de isso que vou dizer agora ficar marcado e, daqui uns quarenta anos, alguém ler esse texto e dizer como eu era academicista, tradicionalista e não tinha visão para a vanguarda, mas vou dizer: o romance é um atentado à literatura. Se alguém me perguntar como se deve escrever um romance eu talvez não saiba responder como escrever, mas saberia dizer como não escrever. Veronika decide morrer é um manual de como não escrever um romance.
Dizem que o melhor livro de Paulo Coelho é Nas margens do Rio Pietra eu sentei e chorei. Talvez um dia eu leia, quando a imagem desse último romance tiver evaporado da minha cabeça.
P.S.: Nessa onda de youtubers que resolveram virar escritores do dia para a noite (eles substituíram a birra geral à autoajuda), há pelo menos um caso que dá pra salvar: Jout Jout. No seu livro, apresentando as suas neuras, ela mostra a cara de uma geração que não aprendeu a ser adulto e tenta lidar com isso. Nesse ponto, o livro de crônicas dela é extremamente rico, sendo imensamente melhor do que os outros livros de youtubers e as autoajudas, as reais e as que simulam ser outra coisa, tipo esse romance do Paulo Coelho.