Um dia perfeito para os peixes-banana: um conto que apanha a face poética de Jerome David Salinger
J. D. Salinger (1919-2010), amado por alguns, odiado – mal compreendido cof! cof! – por outros, lido por beatlemaníacos, adolescentes e amantes da literatura, publicou uma curta, porém belíssima obra, além do conhecido O apanhador no campo de centeio. Entre eles, o aclamado Nove Histórias, no qual reúne, como o próprio título já denuncia, exatamente nove contos: aqui revela-se, do outro lado do campo de centeio, mais da face poética do autor.
No conto Um dia perfeito para os peixes-banana, publicado pela primeira vez em 1948 na revista The New Yorker, Salinger relata um dos efeitos colaterais da Segunda Guerra entre alguns de seus sobreviventes: a melancolia, os transtornos mentais e a pré-disposição ao suicídio.
“Eles entram nadando num buraco onde tem uma porção de bananas. São iguaizinhos a qualquer peixe normal quando entram, mas mal se veem lá dentro eles se comportam como uns porcos. No duro.”
Peixes-banana é dividido em duas partes compostas quase completamente pelos clássicos diálogos realistas e envolventes do escritor, presentes também de forma semelhante em Franny e Zooey.
Na primeira parte, somos apresentados a Muriel Glass pintando suas unhas num quarto de hotel durante uma viagem de férias a Nova York. Quando o telefone toca, o narrador salienta sua indiferença: sem pressa, ela continua a pintar as unhas, atendendo à chamada após algum tempo. Conversa com a mãe que se preocupa com o fato da filha estar numa viagem a sós junto a Seymour Glass, seu marido que retornou da guerra.
Na segunda parte, o narrador nos transporta para a pele de uma garotinha que pergunta constantemente à mãe: “see more glass?”. Ela então vai brincar na praia e encontra um amigo adulto. Seymour tem então a incrível ideia de procurar peixes-banana em meio ao mar. De volta ao hotel, Seymour irrita-se com uma hóspede do hotel, sentindo que esta o estava observando. Retorna ao apartamento e observa a esposa dormindo – dormindo, veja, com seu corpo, mas também com seu espírito que, materialista, permanece cego aos problemas do marido. Ele então pega uma pistola na mala e se mata.
De forma analítica à estrutura narrativa, a primeira parte nos dá pistas sobre a personalidade de Seymour Glass, o personagem central, através de comentários depreciativos de sua sogra acerca de sua instabilidade psíquica, criando uma imagem agressiva de sua personalidade. A segunda parte, no entanto, é quase contraposta à primeira, pois nos revela alguém totalmente diferente do que pensávamos – do que o autor nos fez pensar –, criando uma imagem gentil de Seymour, surpreendendo-nos. E nas últimas linhas novamente algo inusitado ocorre, fazendo-nos pensar o que Salinger realmente quis dizer com tudo isso.
Por que um homem introspectivo e pensativo se casaria com uma mulher extrovertida e materialista, e vice-versa? O que Seymour quis dizer com a metáfora dos peixes-banana? Teria alguma coisa relacionada com o fato de Seymour ter voltado da guerra? E por que ao final ele fez o que fez?
“— O quê que acontece com eles? […]
— Bem, sinto muito dizer isso a você, Sybil. Eles morrem.”
A Europa pós-Primeira Guerra deixou, como rastros de um Tratado de Versalhes injusto e mal resolvido, promessas de vingança e um sentimento múltiplo entre os miseráveis. Disto, como sabemos, surgiram os movimentos totalitaristas expansionistas que em poucos anos originaram a Segunda Guerra Mundial. Alguns anos depois – ou uma eternidade após -, vimos seu fim – ou a maioria de nós apenas leu sobre (somos ou não somos leitores?).
Dividindo-se a história humana em períodos, destacamos de cada fragmento temporal um espírito – um conjunto de pensamentos e sensações vigentes no inconsciente coletivo de cada época: seja a forma religiosa e submissa que tomava a alma medieval, seja a figura científica que ganhava corpo na modernidade, ou, tomando-se um exemplo mais atual, a deformidade da face humana contemporânea na modernidade líquida.
Salinger, através de Seymour Glass, escreveu sobre o espírito humano logo após o fim de duas guerras mundiais, as quais alterariam para sempre, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, a mente do homem, deixando rastros. O que isso nos é útil em pleno século XXI? De alguma forma, os destroços psíquicos da guerra não desapareceram.