Neste ensaio: “Todo exercício poético, principalmente as vanguardas, não edificam o mundo. Retratam-no, mas não o constrói. A poesia não é divina, é humana. É o homem descrevendo, nunca criando, a invenção de Deus. O Verbo não poderia virar poesia porque a criação urgia dimensões, urgia ultrapassar as fronteiras do impessoal”.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as cousas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens.” (O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO: a encarnação do verbo. Capítulo 1. Versículos 1 a 4). Deus era verbo (hoje é mais). Verbo, gramaticalmente é: “Palavra que designa ação, estado, qualidade ou existência.” (Dicionário Aurélio).
Verbo e Deus são sinônimos. O mundo, as coisas vivas e as inanimadas são proles do Verbo. Deus fez sua obra das pronúncias labial dos fonemas dos verbos: criou, haja, ajuntem-se, apareça, produza, povoem-se, voem, sêde, multiplicai-vos, faça, tenham (GÊNESIS: a criação dos céus e da terra e tudo o que neles há. Capítulo 1. Versículos 1 a 31).
Quando Deus, através do Verbo, que é ele próprio, construía sua obra, a cada construção nascia a prosa. O verbo fez-se prosa. A prosa é o instante em que o verbo se faz mundo, se faz carne. Estou referindo-me à prosa literária. O que é uma redundância, visto ser, toda prosa, literária. O falar, o dá nome as coisas e as circunstâncias, é literatura. A filosofia, a história e as ciências em geral, possuem a prosa como língua natural. Língua e prosa são sinônimas.
Por que quando Deus construía sua obra não nascia a poesia? A poesia não é filha de Deus, é neta. A poesia é filha da prosa. Todo exercício poético, principalmente as vanguardas, não edificam o mundo. Retratam-no, mas não o constrói. A poesia não é divina, é humana. É o homem descrevendo, nunca criando, a invenção de Deus. O Verbo não poderia virar poesia porque a criação urgia dimensões, urgia ultrapassar as fronteiras do impessoal. E, a poesia é unilateral. Mesmo a novíssima Transpoética Tridimensional (Criada e teorizada – revista Dimensão nº 27 – por E.M. de Melo e Castro. Poeta português. Fundamental. Reverencio-o por ser sinônimo de vanguarda nos últimos cinquenta anos e mais).
A poesia tem mais de 4.000 anos. A prosa é originária da Criação. A prosa poética é uma necessidade vital do homem de desmaterializar a prosa. Não no sentido de deixar de ser prosa, mas acrescentando um elemento modal, capaz, pelo caráter visceral, de trazer o objeto (vivo ou não) ao seu estado virginal, livre das impurezas do verbo. Trabalho exemplarmente observado na prosa poética de Ponge.
Necessidade vital, essa, unívoca. Vejamos o depoimento de Ferreira Gullar numa mesa redonda de escritores brasileiros e alemães no seminário Literatura e Identidade promovido pelo Instituto Goethe de São Paulo em novembro de 1993, e transcrito na revista do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP: Remate de Males nº 14 de 1994:
“No final de tudo só quero dizer o seguinte: meu percurso foi inicialmente de afastamento da linguagem quotidiana, na busca de uma linguagem essencial; depois passei à desintegração da linguagem e à tentativa de uma linguagem não-sintática. Virei comunista, entrei na luta também porque havia uma ditadura no país. Havia a necessidade da reforma agrária, e ascensão da luta de massa no país. Abandonei, reneguei a vanguarda: comecei a fazer poesia sem literatura, poesia de má-qualidade, poesia que não era para ser poesia. Era para ser pura pregação política. Isto me fez voltar à linguagem do cordel, à poesia mais primária. Foi, na verdade, a retomada com a linguagem prosaica, com a linguagem comum. A partir daí veio toda uma experiência que durou anos e anos. Foi uma redescoberta para mim: aprendi que o poema nasce da prosa, que o que existe é a linguagem prosaica, essa linguagem que falamos, a linguagem de todos. O poema é um acidente que nasce, que se organiza dentro da linguagem comum de todas as pessoas, é o lugar onde a prosa vira poesia. Não existe linguagem poética. Não existe palavra poética. Existe uma ocorrência chamada poema que consiste na transformação, aqui e agora, da linguagem. Uma palavra banal, usada para comprar banana, no poema pode ser transformada, acende-se alguma coisa ali. Não há poesia pura. Se o poema é o lugar onde a prosa vira poesia sempre há a impureza da prosa num poema. E se não houver a prosa, não há a poesia. Assim como se não houver o carvão, não há luz, fogo. A prosa é a matéria e o alimento da poesia.
Foi o que aprendi, e o último poema que escrevi, no último livro que publiquei, chama-se “Nasce o poema” e é feito de prosa. Este poema é como um avião que desce tão rente ao chão que se descesse mais, explodia. Bate no chão, não voa mais. É um poema tão prosaico, e ao mesmo tempo fascina-me tanto por isso, que também não pude escrever mais. Porque se eu descer mais baixo, explode, o avião bate no chão. Fiquei anos sem escrever um poema, porque não podia descer mais, mas também não queria subir. Um belo dia, sem que eu esperasse, a própria vida inventou uma solução para o meu problema. E de repente me vi fazendo um poema ainda mais prosaico do que este, de uma outra maneira totalmente inesperada, sem explodir. E aí fiz uma série de poeminhas, assim, de uma banalidade incrível. São prosaicos, não têm mais o trabalho com a palavra, não têm mais a sofisticação dos meus outros poemas. São a mera descrição das coisas, sem retórica nenhuma.
Vou me permitir dizer um poema de uma enorme banalidade. Por favor, não me esculhambem por isto não. É só para dar uma amostra. É assim:
“Quando meu pai veio para o Rio tratar de uma doença incurável, da qual não se curaria, perdeu os óculos na viagem. Quando lhe levei um novo par de óculos comprado na ótica Fluminense, ele me pediu a nota.
Olhou, guardou no bolso, olhou o estojo e disse: “Quero ver qual é o sacana que vai dizer que eu nunca estive no Rio de Janeiro.”
Citei Ponge, como um desconstrutor do objeto (vivo ou não) através da sua poesia (por mais que ele a renegue) prosa. Assim como Ponge, outros poetas acrescentaram elementos díspares à poesia prosa. Selecionei três. São eles; os franceses Francis Ponge e Charles Baudelaire e o brasileiro Mário Quintana.
Charles-Pierre Baudelaire (1821 – 1867)
Poeta da urbe. Baudelaire descortina a face obscura da cidade, entrando em cena pedintes, prostitutas e viciados. Exilado em sua cidade (Paris), desvenda-a revelando a hipocrisia da Belle Époque, a estonteante luminosidade parisiense e a vida (dia a dia) nas ruas de uma metrópole mecanicista.
Embriagos
Esteja sempre bêbado. Tudo consiste nisso. É a única questão. Para não sentir a carga horrível do tempo, que rompe os ombros e os inclina ao solo, tem que se embriagar sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude. Do que quiser, porém embriague-se.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama de uma cova, na triste solidão de teu quarto, despertas, já diminuída ou dissipada a embriaguez. Pergunta – ao vento, a onda, a estrela, a ave, ao relógio, a tudo que passa, a tudo que geme, a tudo que roda, a tudo que canta, a tudo que fala – pergunta a hora que é: e o vento, a onda, a estrela, a ave, o relógio, atestarão: “E hora de embebedar-se! Para não ser escravo e mártir do Tempo, embriagos, embriagos sem cessar. De vinho, de poesia ou de virtude; do que quiser”.
PETITS POÈMES EN PROSE/CHARLES BAUDELAIRE
(Tradução Cláudio Portella)
Paris o marginaliza, e ele busca sua cidadania (poeta) inserindo a cidade em sua poesia. Instaurando, assim, uma linguagem inaugural: a moderna. Através da qual, retrata o social, o histórico e o pessoal. Poesia e História (em toda sua amplitude) andam de mãos dadas.
O Estrangeiro
― A quem queres mais homem enigmático? Diz-me!A teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou a teu irmão?
― Nem pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão tenho.
― A teus amigos?
― Empregas uma palavra cujo sentido, até hoje, não cheguei a conhecer.
― A tua pátria?
― Ignoro em quê latitude está situada.
― A beleza?
― Bem a queria, já que é deusa e imortal.
― Ao ouro?
― Aborrece-me da mesma forma que vós aborreceis à Deus.
― Pois, a quem queres? Extraordinário estrangeiro?
― Quero as nuvens…, as nuvens que passam… por ali…, as nuvens maravilhosas!
PETITS POÈMES EN PROSE/CHARLES BAUDELAIRE
(Tradução Cláudio Portella)
Francis Ponge (1899-1988)
Embora não conseguindo escapar dela, Ponge nunca quis fazer poesia. Queria registrar (não dá voz) a grandiosidade da natureza. Não confundi-lo com naturalista. Ele não o era. Ponge foi um filósofo, não um filósofo-físico ou meta. Mas um filósofo da linguagem, um pensador do significante, da coisa enquanto coisa inanimada.
Puxa. Traz à tona. Faz submergir o amálgama da coisa, livre das definições etimológicas.
Engana-se quem entende o olhar objetivo de Ponge sobre as coisas (evitando sempre o dizer poético) como uma criação dicionaresca. É justamente o contrário que ele busca. Busca romper com a relação significante/significado, catalogada nos dicionários. E a maneira encontrada é o fulgurar das representações naturais, longe das interpretações.
A Laranja
Como na esponja, há na laranja uma aspiração a recobrar a continência depois de ter passado pela prova da expressão. Mas, onde a esponja sempre alcança êxito, a laranja nunca: pois suas células rebentaram, seus tecidos se rasgaram. Enquanto a casca só se restabelece molemente em sua forma graças a sua elasticidade, um líquido de âmbar se espalhou, acompanhado de refrescância, de perfume suaves, é certo, – mas, frequentemente, também da consciência amarga de uma expulsão prematura de pevides.
Será preciso tomar partido entre essas duas maneiras de mal suportar a opressão? – A esponja não é se não músculo e se enche de vento, de água limpa ou de água suja, conforme: essa ginástica é ignóbil. A laranja possui melhor gosto, mas é por demais passiva, – e esse sacrifício odorante… é ter o opressor em muito boa conta, de fato.
Mas, não é ter dito o suficiente da laranja apenas ter lembrado seu modo particular de perfumar o ar e regalar o seu algoz. É preciso acentuar a coloração gloriosa do líquido que dela resulte, e que, melhor que o suco do limão, obriga a laringe a se abrir largamente tanto para a pronúncia da palavra quanto para a ingestão do líquido, sem nenhum beicinho apreensivo com a anteboca, da qual não faz as papilas se eriçarem.
E fica-se, de resto, sem palavras para confessar a admiração que merece o envoltório do tenro, frágil e rosado balão oval nesse espesso mata-borrão úmido cuja epiderme extremamente fina, mas muito pigmentada, acerbamente sápida, é justo assaz rugosa para prender dignamente a luz sobre a perfeita forma da fruta.
Entretanto, ao fim de um brevíssimo estudo, levado a efeito tão redondamente quanto possível, – é preciso voltar à semente. Esta, da forma de um minúsculo limão, oferece, no exterior, a cor da madeira branca do limoeiro; no interior, um verde de ervilha ou de vergôntea tenra. É nela que se encontram, após a explosão sensacional da lanterna veneziana de sabores, cores e perfumes que constitui o próprio fruto- balão, – a dureza relativa e o verdor (aliás não inteiramente insípido) da madeira, do ramo, da folha: pequeníssima, em suma, embora resuma, decerto, a razão de ser da fruta.
LE PARTI PRIS DES CHOSES/FRANCIS PONGE
(Tradução de Carlos Loria e Adalberto Müller Júnior)
Não preocupa à Ponge as características do discurso literário. Não o interessa a língua enquanto signo. Sua preocupação é com a conotação da coisa. Conotação, essa, da coisa para o homem. Nunca o contrário.
Mais que vate ou filósofo, Ponge foi um pedagogo. Não dos humanos, porém, das coisas. Depois dele, um rio, uma concha, um pedaço de carne, o que seja, não nos olha mais pelo mesmo olho.
Margens do Loire
Roanne, 24 de maio de 1941
Que doravante nada me faça voltar atrás em minha determinação: jamais sacrificar o objeto de meu estudo à valorização de algum achado verbal que eu tiver feito a seu propósito, nem ao arranjo em poema de vários desses achados.
Voltar sempre ao próprio objeto, ao que ele tem de bruto, de “diferente”: diferente em particular do que já(neste momento) escrevi sobre ele.
Que meu trabalho seja o de uma retificação continua de minha expressão (sem preocupação a priori com a forma dessa expressão) em favor do objeto bruto.
Assim, ao escrever “sobre” o Loire em um lugar das margens desse rio, deverei mergulhar nele constantemente meu olhar, meu espírito. A cada vez que ele tiver “secado” sobre uma expressão, mergulhá-lo de novo na água do rio.
Reconhecer o maior direito do objeto, seu direito imprescritível, oponível a qualquer poema… Já que em relação a nenhum poema jamais deixa de haver apelação a mínima por parte do objeto do poema, assim como não deixa de haver acusação de fraude.
O objeto é sempre mais importante, mais interessante, mais capaz (cheio de direitos): não tem qualquer dever diante de mim, eu é que tenho todos os deveres para com ele.
O que as linhas precedentes não dizem de modo suficiente: “em consequência”, jamais deter-me na forma “poética” – “devendo” esta, no entanto, ser utilizada em um momento de meu estudo porque ela dispõe um jogo de espelhos que pode fazer com que apareçam certos aspectos do objeto que ficaram obscuros. O entrechoque das palavras, as analogias verbais são “um” dos meios de escutar o objeto.
Jamais tentar “arranjar as coisas”. As coisas e os poemas são inconciliáveis.
A questão é saber se queremos fazer um poema ou apresentar uma coisa (na esperança de que o espírito ganhe com isso, dê a seu propósito algum passo novo).
É o segundo termo da alternativa que meu gosto (um gosto violento pelas coisas e pelos progressos do espírito) sem hesitação me leva a escolher.
Minha determinação, portanto, está tomada…
Pouco me importa depois disso que queira chamar de poema o que dela vai resultar. Quanto a mim, a menor desconfiança de ronrom poético adverte-me apenas que estou caindo na artimanha e provoca meu empenho para sair dela.
DE LA RAGE DE I’EXPRESSION/FRANCIS PONGE
(Tradução de Júlio Castañon Guimarães)
Mário Quintana (1906-1994)
Provavelmente o mais existencialista dos poetas brasileiros. O dissídio de Francis Ponge, enquanto esse se ocupa com a sinestesia dos objetos, Mário Quintana encarrega-se do aperfeiçoamento do homem.
Crítico mordaz, absorto entre o refinamento da arte e a melhoria da alma. Seus poemas são marcados pela ironia. Ironia, aparentemente juvenil, contudo, transpassada de uma inteligência vaporosa adquire uma transubstanciação de um mantra, uma risada evocada para fazer corar, parar e refletir.
O Estranho Caso de Mister Wong
Além do controlado Dr. Jekyll e do desrecalcado Mister Hyde, há também um chinês dentro de nós: Mister Wong. Nem bom, nem mau: gratuito. Entremos, por exemplo, neste teatro. Tomemos este camarote. Pois bem, enquanto o Dr. Jekyll, muito compenetrado, é todo ouvidos, e Mister Hyde arrisca um olho e a alma no decote da senhora vizinha, o nosso Mister Wong, descansadamente, põe-se a contar carecas na platéia…
Outros exemplos? Procure-os o senhor em si mesmo, agora mesmo. Não perca tempo. Cultive o seu Mister Wong!
A poesia em prosa de Quintana é toda oratória; é o padre a quem confessa os pecados, o analista com quem faz consultas, o místico ao qual procura ajuda metafísica. Enfim, sua prosa é a válvula de escape que o arrasta para longe das conceituações da poesia, onde, apesar de todas as figuras da expressão (metaplasmos e metataxes) e de todas do conteúdo (metassememas e metalogismos), não existe lugar para a lamúria da poesia.
Das Metamorfoses
A lua, quando fica velha, todo o mundo sabe que vira lua-nova.
Mas negro velho vira macaco. Desses macaquinhos de realejo… Cuidado: quanto mais velho mais vivos. Sabem tudo. Descobrem tudo. Se tem algum pecado oculto, foge das suas caretas falsamente amigas, dos seus olhinhos espertos e cínicos!
E os velhos jurisconsultos viram fetos… esses fetos que a gente olha, meio desconfiado, nos bocais de vidro… e que, no silêncio dos laboratórios, oscilando gravemente as cabeças fenomenais, elucubram anteprojetos, orações de paraninfos, reforma de Constituição… Sempre que puderes, crava um punhal, um garfo, um prego, no miolo mole dos fetos.
Em compensação, as velhinhas que fazem renda viram fio… Fio, sim senhor! Esses fios que vagam soltos no ar… que ninguém sabe de onde vêm… e se prendem num galho morto… no chapéu do viajante solitário… no freio do seu cavalo… que se prendem, desesperadamente, num lábio fresco, numa trança ao vento…
E os velhos que mal podem acender os cigarros, os pobres velhinhos trêmulos viram reflexos… Esses reflexos que dançam no ar… que nascem no ar… De uma vidraça… de um pára-brisa… do galo do pára-raio que volteou de súbito… de folhas que se assustam… de mariposas tontejando… de uma ronda infantil sob a lua redonda…