Marte é a próxima fronteira humana, por isso é um fetiche da ficção científica e tem figurado frequentemente na arte. Andy Weir é o mais recente escritor a “ficcionalizar” o planeta em seu livro Perdido em Marte.
Marte é um fetiche da ficção científica (e não me excluo de seus adoradores) desde a descrição feita pelo astrônomo Giovanni Schiaparelli sobre uma aparente série de canais na superfície marciana; canais considerados por demais cientistas como não feitos por mero acaso, e foi a deixa para que, no século seguinte, se especulasse a respeito de vida inteligente em Marte.
Porém, a teoria dos canais foi desacreditada com a evolução da tecnologia: constatou-se que a visão de Schiaparelli centenas de anos antes, que astrônomos posteriores insistiram em identificar, não passava de uma simples ilusão de ótica. Com satélites orbitando o planeta e robôs da NASA desbravando a paisagem, não restou dúvidas de que eles não existiam, os tais canais construídos por uma civilização avançada. A notícia chegou um pouco tarde: Marte já havia se tornado parte do imaginário humano; passaram por ele Edgar Rice Burroughs, Ray Bradbury e Kim Stanley Robinson, para citar apenas alguns dos autores que se deixaram levar por uma paixão pelo planeta (no Brasil, temos Carlos Orsi. Fica a dica).
A verdade é que seria inevitável que Marte figurasse tanto na nossa arte: ele é a próxima fronteira humana. Levamos astronautas para a Lua, agora queremos levá-los a Marte; sonhamos com a expansão da nossa raça, a transformação de um planeta desabitado em um novo lar e, enquanto apenas sonhamos, também escrevemos. Andy Weir é o mais recente escritor a fazê-lo.
A história de Weir é curiosa, ainda que cada vez mais comum nos dias de hoje. Ele colocou seu manuscrito à avaliação de editoras e descobriu-se recusado por todas elas. Não perdeu o ânimo. Postou a história inteira, chamada The Martian, em seu site pessoal, e do site acabou na Amazon, onde as vendas cresceram espantosamente e chamaram a atenção da Crown, divisão da Random House. Assinou-se o contrato, e Andy Weir tornou-se a nova sensação do sci-fi.
Aqui no Brasil, o livro é publicado pela Arqueiro, com o título de Perdido em Marte. Quando se trata de literatura marciana, separo as histórias em duas divisões pessoais e, penso eu, bem simples: 1) coisas acontecem em Marte, porque sempre precisam acontecer e 2) coisas terríveis acontecem em Marte. Perdido em Marte pende para a última categoria. É a história do botânico e engenheiro Mark Watney, um astronauta que é deixado no planeta deserto depois que sua equipe é forçada a partir no meio de uma emergência, com Mark sofrendo um acidente e sendo dado como morto. Começa o esforço de Mark para sobreviver sozinho, apenas com os recursos que sua expedição deixou para trás.
A história é dividida entre os diários de Mark, os bastidores da equipe de operações da NASA, se esforçando para salvá-lo; e os membros da missão abortada, os colegas de Mark que, por acidente, deixaram-no para trás. As partes dos relatos de Mark são as mais interessantes, principalmente depois que você vence a necessidade de Andy Weir de nos explicar cada minúcia científica para justificar os atos de seu astronauta, como se ele quisesse nos garantir ter feito sua pesquisa, de que você vai entender cada coisa que se dá. Excesso de explicações pode ser fatal para ficção, especialmente quando ela começa a se parecer com um manual técnico. Weir quase chega lá, o que o salva é o próprio Mark, o modo como ele zomba da própria situação e da ciência que pode salvá-lo, trazendo algo de humanidade aos diários. As outras personagens são menos desenvolvidas, e são tantas, tantos os nomes, que elas acabam se apagando ou se combinando em uma única entidade, tornam-se sombras atrás do palco. O coração da história é Mark. É a existência dele que é ameaçada a cada momento.
“O Programa Ares. A humanidade voltando-se para Marte com o intuito de mandar pessoas para outro planeta pela primeira vez e expandir o horizonte da raça humana, blá-blá-blá. Os tripulantes da Ares I fizeram o que tinham de fazer e voltaram como heróis. Foram recebidos com desfiles, conquistaram a fama e o amor do mundo inteiro.
Ares 2 fez a mesma coisa, em outro local de Marte. Receberam um aperto de mão firme e uma xícara de café ao chegar em casa.
A Ares 3. Bem, essa foi minha missão. Certo, não exatamente minha. A comandante Lewis era a responsável. Eu era apenas um dos tripulantes. Só ficaria “no comando” da missão se fosse a última pessoa que restasse.
Quem diria?…Estou no comando.”
As piadas podem nos desafiar de tão abundantes, mas o estado de espírito de Mark é compreensível; é o humor catártico que pertence a um homem perdido em um planeta onde não há mais ninguém, o que torna Mark um pouco de tudo, de sobrevivente a lunático a monarca de Marte. Em essência: o marciano, como nos diz o título original.
“Depois de desligar tudo, o interior do Hab ficou macabramente silencioso. Eu havia passado 449 sóis ouvindo seus aquecedores, respiradouros e ventiladores. Mas, agora, o silêncio era absoluto. Um silêncio assustador, difícil de descrever. Já fiquei longe dos ruídos do Hab, mas sempre em um veículo espacial ou em um traje para AEVs, que contam com seu próprio maquinário barulhento.
Mas, naquele momento, não havia nada. Nunca percebi como Marte é silencioso. Um mundo silencioso, praticamente sem atmosfera para propagar sons. Eu podia ouvir meu próprio coração batendo.”