Portnoy: o personagem criado por Philip Roth que não foi capaz de contar a própria história e mal pode dizer que é protagonista dela
Em Complexo de Portnoy, romance de Philip Roth, quem fala ao longo de todo o livro é apenas o jovem judeu norte-americano Alexander Portnoy. Este, coitado, bem merece ter aqui o monopólio do discurso, já que nunca foi capaz de escrever de fato a própria história de vida, mal podendo se dizer protagonista dela. A personagem principal sempre foi sua mãe, a rainha de seu típico lar anglo-judaico: Sophie Portnoy.
A narrativa é o relato do complexado Alexander a seu psicanalista Dr. O. Spielvogel, e Sophie é quase sempre o assunto. O primeiro capítulo se chama “O Meu Tipo Inesquecível” – título característico de certas crônicas de revistas como a mundialmente conhecida Seleções, que traçam o perfil de pessoas pitorescas ou marcantes. E a mãe de Portnoy marca realmente todas as experiências que ele vem a passar na vida.
Logo na infância, ele imaginava que as professoras da escolinha eram sempre sua mãe encoberta sob meticuloso disfarce. Corria para casa na esperança de flagrar Sophie antes de sua transformação em zelosa dona de casa, mas sempre se frustrava: ao chegar, lá estava ela na cozinha, metida em seu costumeiro avental, fazendo bolinhos. Na mente do pequeno Alex, a culinária da mãe – à semelhança da capacidade de se transmutar em outras mulheres – também era um dom mágico. Como poderia se explicar aquelas fantásticas gelatinas com pedaços de pêssego flutuando no meio, em flagrante desafio à lei da gravidade?
Sophie era mesmo uma bruxa da culinária, a senhora que regia com mão de ferro o cardápio familiar. Fazia questão de ralar ela própria a raiz-forte, em vez de comprá-la já pronta como era feito geralmente em outras casas da vizinhança. Vigiava o açougueiro “feito um falcão”, conforme dizia, para se certificar de que a carne estava sendo moída de acordo com as prescrições da lei judaica. Sua comida era a correta, os alimentos da rua, verdadeiro veneno.
Quando Alexander começou a demorar mais que o usual no banheiro, ela logo se preocupou com suas supostas diarreias. Só poderiam advir de comida de lanchonete. À entrada fechada do banheiro, ela exigia que o filho confessasse ter andado comendo guloseimas industrializadas ao sair do colégio. Ordenava, esmurrando a porta, que ele lhe deixasse examinar o produto de seus intestinos. O pobre adolescente Portnoy tentava se concentrar em suas fantasias sexuais durante a masturbação, enquanto a mãe lhe interrogava através da porta a respeito do que havia comido. Não havia mesmo, para Alex, nenhum espaço privado.
Sophie conferia os exercícios escolares do filho buscando encontrar inexatidões em suas respostas; examinava suas meias em busca de buracos; vasculhava unhas, pescoço, cada junta, cada dobra de seu corpo, atrás de sujeira. E até seus intestinos ela queria controlar.
Mas incontroláveis mesmo eram os intestinos paternos. Negavam-se terminantemete a funcionar. Jack, pai de Alexander Portnoy, vivia oprimido por suas obrigações morais. Havia o dever de ser um bom vendedor de seguros, a necessidade de acreditar nos produtos que oferecia, na benevolência da seguradora, na importância da empresa a que servia com zelo. Achava os potenciais clientes um bando de ingratos que não valorizavam as apólices de seguros anunciadas – as quais metaforicamente qualificava como “guarda-chuva para os dias de tempestade”. Porém de que “guarda-chuva” Jack dispunha contra seus próprios momentos tempestuosos? A sua insegurança era constante: medo de falhar como vendedor, de ficar desempregado… Aí vinha a prisão de ventre, que – segundo Sophie – era culpa dele mesmo:
“– É porque você come depressa demais.”
A culpa está presente em todo o romance. Não é fruto da fragilidade de Portnoy, que, em verdade, tem atitudes até bem corajosas perante o moralismo judaico e os valores familiares tradicionalistas. Discute com os pais. Nega a existência de Deus bem diante deles. Professa opiniões políticas liberais. O problema não é tanto a psicologia de Portnoy, pretensamente frágil, mas a força descomunal de valores que se alojam nas mentes desde a mais tenra infância.
O tradicionalismo judaico é um gigante bem difícil de ser enfrentado pelos “davis” de hoje, que, mesmo guarnecidos das armas da modernidade, se sentem pequenos frente aos “golias” atuais.
Hannah, irmã de Alexander, resigna-se à sua realidade, mas para ele não existe essa opção. Alex, afinal, sente uma atração irresistível pelas coisas não judaicas, que estariam interditas a ele. É uma paixão pelo proibido. Não por acaso, durante a adolescência, ele amarrava sutiãs de sua irmã na porta do banheiro para inspirar fantasias sexuais comumente envolvendo moças anglo-saxãs protestantes bem típicas. Ele era um eterno estrangeiro nos Estados Unidos, um país que parecia feito para os gentios e somente para eles. O universo judaico envolvia Portnoy por todos os lados como um abraço materno, mas ele sempre buscava esquivar-se, desfrutar o modo de vida estadunidense, moderno, glamouroso e sensual, representado por moças cristãs alouradas, com sobrenomes tipicamente americanos e característicos seios fartos.
E na imaginação de Portnoy fervilhavam ícones eróticos yankees, principalmente colegiais, animadoras de torcidas de rugby ou baseball. Mas seus desejos também se voltavam para outras gentias. Adulto, veio a se envolver com universitárias, intelectuais, algumas com mais, outras com menos atrativos sexuais. E justamente uma hipersimplória (cujo nível intelectual era nulo e a vulgaridade de modos, extrema) lhe dava prazer incomensurável. Mas como se unir a uma mulher que mal conseguia escrever um bilhete sem cometer erros crassos de ortografia? Aí vinham as interdições sociais novamente impondo restrições ao pobre Portnoy. Seus relacionamentos amorosos eram sempre insatisfatórios. Algumas mulheres eram inteligentes, mas não atraentes. Outras eram sensuais, mas ignorantes. Ou exigentes demais, problemáticas, vulgares, ou inalcançáveis.
As judias, em especial, eram inalcançáveis justamente porque Portnoy não conseguia sentir atração por elas. Entre a comunidade judaica ele se sentia em casa, à vontade. Mas, paradoxalmente, não era isso que ele queria. Aquela familiaridade toda lhe era repulsiva. Relacionar-se com uma judia seria como fazer sexo com alguém da família. Algo a ver com Édipo? Sim, mas não apenas. Portnoy se irrita mais de uma vez ao longo de seu relato com as simplificações freudianas (ou pós-freudianas) acerca do que se convencionou chamar de complexo de Édipo.
Se a Psicanálise tem catalogado demais os fenômenos de nossas vidas interiores, cabe a arte nos oferecer visões mais amplas sobre o espírito humano, visões em que caibam a dúvida e, também, o humor.
Aliás, quem quiser encarar esse romance como uma grande comédia – acerca de frustrações juvenis, masturbação, fetichismo e taras em geral – saiba que é também uma leitura possível. Tal opção também não desmerece a obra em nada, pois não há temas proibidos à literatura. De proibições, já bastam as sofridas pelo pobre Portnoy, não é mesmo?