Em Planeta dos Macados (1968), de Franklin J. Schaffner, somos surpreendidos por uma inversão de papéis: humanos vivem em florestas como selvagens, mudos e seminus, enquanto macacos desfrutam de uma sociedade estruturada.
Na década de 1960, houve uma crescente no gênero de ficção científica na literatura e sobretudo nos cinemas. O auge da Guerra Fria e a corrida espacial proporcionaram um cenário sócio-político perfeito para um fervor criativo sobre o tema, sem falar do interesse das produtoras em contar essas histórias. Foi nesse contexto que surgiu um dos grandes clássicos da ficção científica. Em 1968, fora lançado o primeiro filme da franquia Planeta dos Macacos, dirigido por Franklin J. Schaffner, adaptado do romance de mesmo título.
No filme, após anos-luz hibernando pelo espaço, uma nave tripulada por terráqueos, entre eles o protagonista George Taylor (interpretado por Charlton Heston), cai no mar de um planeta desconhecido. Ao explorar o lugar em busca de vida, e de sobrevivência, o protagonista descobre que esse mundo é constituído por uma sociedade de macacos ao que tudo indica “evoluídos” do humano.
A inversão entre humanos e macacos
É fascinante imaginarmos como seria uma civilização extraterrestre dentro das infinitas possibilidades que a vastidão do cosmos nos oferece. Durante todo o tempo, o filme deixa subentendido que se trata de um planeta nos confins do universo, e somos surpreendidos quando vemos humanos vivendo em florestas como selvagens, enquanto macacos desfrutam de uma sociedade estruturada, cheia de politicagens, burocracia e com muito fundamentalismo religioso. Nesse cenário, a sociedade símia é bastante familiar para nós. É a partir disso que o filme começa a organizar suas ideias.
Dada a premissa, a obra traça diversas críticas sociais, explorando as muitas nuances de uma mesma questão: o comportamento humano. São alfinetadas recorrentes por toda a história, seja em frases de efeito, tal qual “humanos e suas humanices”, seja em questões existenciais mais elaboradas, como o fato de Taylor poder falar e ser inteligente, automaticamente visto como uma aberração a ser extinta.
Além disso, o filme toca em tabus da época, como acontece na famosa cena em que o protagonista, um homem loiro e de olhos azuis, é capturado como um animal selvagem por um gorila militar. “Tire suas patas sujas de mim, seu maldito macaco imundo”, revida Taylor ao símio, frase que gerou muita discussão no final daquela década.
A virtude da ignorância
A camada mais óbvia de interpretação para a cena, e para a obra como um todo, é que se trata de um reflexo direto do seu tempo. Medos, traumas, ignorâncias. Está tudo ali. Não à toa, os anos 60 foram recheados de movimentos pela paz, preocupações com a natureza e questões humanitárias. Foram reações diretas ao status quo e às gerações anteriores que agiram dizimando nações inteiras, vivendo grandes crises, traumatizando seus “heróis”, tudo em nome da guerra.
Planeta dos Macacos também é uma resposta aos homens primitivos de sua geração. Somos inseridos em um mundo espelhado, onde vemos uma sociedade de macacos agindo pelo medo do diferente, das ciências, das descobertas e do progresso, tal qual os homens-primatas que insistem em existir até os dias de hoje.
Os símios nutrem um temor ainda maior por Taylor, um extraterrestre para eles. Afinal, o que mais poderia ameaçar as muralhas de uma mente fechada se não a presença do que existe fora dela? Quando olhamos de maneira mais aprofunda para o espelho que o filme nos coloca de frente, entendemos que o medo dos símios não é movido somente pela ignorância, há também feridas causadas pela da natureza humana que ainda sangram.
“Será que o humano, essa maravilha do universo, glorioso paradoxo que me mandou às estrelas, ainda faz guerra com os irmãos e deixa as crianças no vizinho quando está na miséria?“, indaga Taylor para o diário de bordo, ainda vagando pela imensidão do hiperespaço.
A busca por extraterrestres
Seguindo o raciocínio da caricatura humana que o filme desenha, nos perguntamos se realmente é necessário espalharmos nosso potencial destrutivo pelo universo. Explorar para quê? Conquistar para quem? Precisamos mesmo receber visitas de seres ainda mais problemáticos que nós? Nessa irmandade intergalática, quem é Caim, quem é Abel? Questões como essas refletem o subtexto mais abstrato da obra.
Se um ser extraterrestre cai do céu em um veículo espacial, portando uma tecnologia entendida como feitiçaria pelos nativos e um conhecimento expandido, de qual lado ele estará? Quais seriam suas ações? Seria ético?
Ao considerarmos as influências geradas por um extraterrestre em uma sociedade menos avançada, esbarramos em um outro clássico da literatura, “Eram os Deuses Astronautas“, de Erich von Däniken, que tem boa parte do sua tese aproveitada nas entrelinhas de Planeta dos Macacos. No entanto, mais uma vez, o filme subverte o conceito, outro acerto de seu afiadíssimo tom crítico.
O astronauta em questão não é adorado, muito menos tido como um Deus. Sua cultura deve ser evitada, seu comportamento perseguido e odiado, caçado como um demônio. Como dizem as escrituras sagradas dos símios, lidas pelo chimpanzé Cornelius (Roddy McDowall) em dado momento do filme:
“Cuidado com a besta-humana […] dentre os primatas de Deus, ele mata por esporte, luxúria ou ganância. Sim, ele matará seu próprio irmão para tomar sua terra. Não os deixe procriar em grandes números, pois ele transformará seu próprio lar num deserto […]”.
No auge do pedestal do saber e da soberba símia, o orangotango Dr. Zaius (Maurice Evans) vê Taylor como Prometeu, que na mitologia grega rouba a chama da sabedoria dos deuses para entregar à humanidade, e por isso é severamente castigado por Zeus. Nesse sentido, o fogo roubado escancara a ignorância já enraizada na cultura dos macacos, e também na nossa. Deixa queimaduras profundas, e abala a sociedade em nome de uma verdade indesejada. Zeus é o Dr. Zaius, o líder conservador hipócrita.
A imortalidade de Taylor se dá pelos muitos anos-luz que o separam dos anos 60, dos seus amigos, familiares e de um lar. E seu castigo… Bem, isso o filme deixa para a última cena. A ave que tortura Prometeu, mordendo seu fígado todos os dias, é o monumento da liberdade, símbolo do sentido mais letal de uma utopia que coloca Taylor junto aos cacos de uma sociedade que falhou, falha e falhará.
Conclusão
O filme Planeta dos Macacos nos faz olhar para um espelho distorcido, no qual expressamos a raiva que sentimos pelo outro. As consequências do pior que existe em nós moveu o mundo para o caminho da auto-extinção. Para o filme, amigos, família e um lugar que chamamos de lar não foram o bastante para mudarmos o rumo, e é para lá que devemos ir. Seria a ignorância dos macacos uma bênção?