Pode uma ditadura calar um escritor?

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A curiosa relação de um escritor brasileiro e um argentino.

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É sobre dois homens em Buenos Aires, eles nunca se encontram. 

Um deles caminha pela avenida San Juan, quiçá pela Entre Rios. 25 de março de 1977. Está morto.

O outro caminha não longe da esquina entre as duas avenidas. É uma candente manhã de fevereiro de 2012.

Ambos usam óculos de aros grossos e, com uma diferença de estatura literária, ambos se dizem jornalista, tradutor, escritor.

O que está morto, vamos chamá-lo de homem anterior, se lhe permitem caminhar pela cidade é apenas para facilitar a emboscada. Depois do golpe militar de 1976, com a ajuda de um amigo que trabalhava na polícia, o homem anterior passou à clandestinidade. Seu nome falso era Norberto Pedro Freyre e ele se fazia passar por mais velho do que os seus recém-completados cinquenta anos.

O outro, que tal o homem posterior?, quer chegar à agora decadente Plaza Constitución, pois ela é citada na primeira frase de “O Aleph”. Mas por que ele está em Buenos Aires?

 

Em 2 de fevereiro de 2012 11:56, MVA escreveu: O Luís, que bacana essa tua aventura aí na Argentina. Li e senti um certo romantismo na cena. Um jovem escritor brasileiro, num ap em Bueno Aires, escrevendo ao som abafado de um tango que vem da rua. (Só faltou uns cigarros, mas iria enfumaçar a cena.) Se for pelo ambiente, acho que essa passagem por Bueno Aires vai te fazer muito bem. (Mas diz aí, e as argentinas? Tem picado?) Abraços, e quando voltar, dá um toque. Em 2 de fevereiro de 2012 12:59, Luís Roberto escreveu: M., a ideia era romântica mesmo, mas a realidade, como quase sempre, é mais complicada. Aqui está fazendo um calor dos diabos, um calor úmido, grudento, como o de Porto Alegre no verão, sabe? E o som que tenho aqui no apartamento é do ar-condicionado do vizinho. Não é o melhor ambiente para escrever, eu diria. Mas em algum momento alguma coisa sai. As argentinas me parecem complicadas, mas é o mesmo espírito da escrita. Em algum momento alguma coisa sai. Abraços, ou, como diria o Assis: Há braços.

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A Escola de Engenharia Mecânica da Marinha (Esma), no bairro de Núñez

No elegante bairro buenairense de Núñes, uma área equivalente a 17 campos de futebol margeia a avenida Del Libertador. Poderia ser um oásis no caos metropolitano. Mas como, se ali cinco mil pessoas foram torturadas? A Escola de Engenharia Mecânica da Marinha (Esma) serviu de maior campo de detenção ilegal e de tortura durante a última ditadura militar (1976-1983) argentina. Agora é o “Espacio para la Memoria y la Promoción y defensa de los Derechos Humanos”, o qual se pode visitar. É um passeio longo, de três horas, e, sobretudo, pesado. Ouve-se que dos cinco mil torturados, cerca de 200 sobreviveram. Ouve-se de estupros e roubos de bebês. Ouve-se de capuzes amarrados nas cabeças dos prisioneiros para que não enxergasse ou ouvissem. Ou o contrário: eram mantidos numa sala com luz tão forte que cegante e uma música para lá de estourar os tímpanos. Escuridão ou luz ou barulho ou silêncio em demasia, falta absoluta de referências, solidão, opressão incessante, lenta, aniquilamento. 

E mais: da Esma partiam os “voos da morte”, nos quais helicópteros levavam opositores da ditadura para serem lançados no Rio da Plata. Da Esma se podem escutar os gritos do vizinho estádio do River Plate, o Monumental, que sediou a final da Copa de 1978. Uma prisioneira depois relataria como os gritos dos torturados se misturavam aos dos torcedores nas vitórias que levaram a Argentina ao título mundial.

 

Durante o passeio, o homem posterior escuta do homem anterior. Que em 25 de março de 1977 foi aniquilado na esquina das avenidas San Juan e Entre Rios. Foi assassinado por um sem número de tiros pelo Grupo de Tarefas 3.3.2., da Esma, e para a Esma levaram o corpo. Levaram em triunfo pelos assassinos e consta que foi exibido aos prisioneiros.

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Em 2010, Tzvetan Todorov palestrou na Argentina. Conheceu a Esma e um monumento aos desaparecidos durante a ditadura. Depois escreveu um texto para o Le monde no qual afirma ter sentido falta nesses lugares de sinais que remetessem ao contexto em que, em 1976, a ditadura foi instaurada e ao que acontecia no país antes dela e ao ocorreu depois. Ressalta que um terrorismo revolucionário precedeu e conviveu no início com o terrorismo de Estado, e não se pode compreender um sem o outro.

Um bom momento para contextualizarmos. O homem anterior é Rodolfo Walsh. Enveredou pela literatura com o gênero policial. Traduziu e revisou obras policialescas para editora Hachette. Em seu livro de estreia, Variações em vermelho, testa as convenções do gênero. Mas sua literatura logo tomou um viés político. Em 1957, lançou Operação Massacre, combinando a narrativa jornalística com a literária ao narrar a execução sumária de 12 homens em 1956 pelo governo militar que no ano anterior havia deposto Juán Domingo Perón.

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Rodolfo Walsh: “Penso que a literatura é, entre outras coisas, um avanço laborioso através da própria estupidez“

Walsh também se fez notar por seus contos, como os do livro Essa mulher, no qual o texto que dá título à obra mostra dois personagens conversando sobre Evita sem que o nome dela seja pronunciado. Outro de seus contos, “Nota de rodapé”, costuma ser presença obrigatória em antologias dos melhores da literatura argentina.

O escritor era um homem de ação, e não só na literatura. Depois do golpe militar de 1976, filiou-se à guerrilha esquerdista Montoneros, principal foco de resistência à ditadura. Já nos anos anteriores ao golpe, no ambiente de tensão política e social que vivia a Argentina, a Montoneros organizou assassinatos de políticos e militares, além de assaltos para arrecadar fundos para financiar a guerrilha. E se tivesse chegado ao poder, a organização poderia implantar uma ditadura, só que de esquerda.

O fato é que a Montoneros não assumiu o poder. E no contexto daquela época, e em qualquer época, os crimes da ditadura militar são particularmente graves pelo fato de serem promovidos pelo aparato estatal, que em tese deveria garantir a legalidade. Esse tipo de crime, como constata Todorov, não apenas destrói as vidas dos indivíduos, mas também as bases da vida comum.

Quando foi assassinado, Rodolfo Walsh estava indo se encontrar com outro montonero. Poucos dias antes, havia divulgado um texto chamado Carta Aberta à Junta Militar, na qual denuncia os abusos e mentiras do regime.

O caso de Walsh foi uma das bandeiras empunhadas pelos governos Nestor e Cristina Kirchner para simbolizar o cancelamento da anistia aos envolvidos em crimes de Estado na ditadura. Em 2011, a Justiça determinou a prisão de 12 responsáveis por torturas e desaparecimentos na Esma relacionados ao sumiço de Walsh.

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Menos de um mês depois do homem anterior ter sido assassinado, o homem posterior nasceu. Não que uma coisa esteja relacionada à outra, não está, é só uma coincidência. Mas gosto de imaginar que estou pronto para entrar no mundo e o Rodolfo Walsh está de saída. Nós nos encontramos naquele limbo da beira do gramado, como se fosse um jogo de futebol, e não que fosse substituí-lo, vejam bem, não é isso, é só que ele está saindo, eu estou entrando, não no lugar dele, apenas entrando, no lugar de ninguém. Mas isso não impede que imagine que ele me abrace e me dê um beijo no rosto, como os argentinos fazem na Libertadores ou na Copa América. E ele me diria alguma coisa ao pé do ouvido. O quê? Ainda não consegui precisar.

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Luís Roberto Amabile é escritor, jornalista e dramaturgo. Seu livro de estreia, O amor é um lugar estranho (Grua, 2012), foi finalista do Prêmio Açorianos. Em 2014, espera concluir e lançar O livro dos cachorros. Mantém o blog Molto Amabile.

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