Tão impressionante quanto a obra, O Castelo, é saber que Kafka a redigiu em apenas seis meses, entre o fim de fevereiro e o começo de setembro de 1922

É bem conhecida a história de Kafka ter pedido ao amigo, Max Brod, que queimasse seu espólio literário após sua morte. Felizmente para nós leitores, Brod se negou ao que seria um grande atentado contra a literatura ocidental, caso se perdessem essas obras. Entre os manuscritos, um calhamaço de “garranchos” (as palavras são de Kafka) se destacava: O Castelo.
A história é protagonizada por um agrimensor – profissional dedicado à medição de terras – que é contratado para ir a um certo castelo, noutro país, para prestar seus serviços. O primeiro capítulo narra a chegada de K. à aldeia que está no território do castelo. Contudo, os dias vão se passando e este agrimensor não consegue chegar ao seu objetivo. Pior, descobre através do prefeito da aldeia, a quem Klamm (um dos senhores do castelo) nomeia como seu superior, que não havia a necessidade de um profissional desta função. E um certo auto (perdido) certamente apontava este fato. Páginas antes, K. recebe dois ajudantes, os quais não solicitou e não conhece. Também lhe é dado um mensageiro, teoricamente, sua ligação com o castelo, mas K. sequer consegue falar com Klamm, o que, aliás, vira a sua obsessão. Há de se destacar ainda a relação do protagonista com Frieda, a princípio, balconista da Hospedaria dos Senhores e amante de Klamm, com quem K. se envolve, embora os motivos nunca deixem de ser obscuros.
Tão impressionante quanto a obra é saber que Kafka a redigiu em apenas seis meses, entre o fim de fevereiro e o começo de setembro de 1922. Muito embora seja importante lembrar que, em 1914, há uma anotação no diário do escritor na qual, em certa passagem, há um estranho que entra numa aldeia, sem conseguir alojamento numa hospedaria. E a argila de que é formado O Castelo? Através das cartas de Kafka, nota-se a influência de algumas obras literárias: Temor e tremor, de Kierkegaard; O outro lado, de Alfred Kubin; Educação sentimental, de Flaubert; passando por uma lista enorme de autores, que chega até A divina comédia, de Dante; e Afinidades eletivas, de Goethe.
Mas foquemos no castelo.
Se é poderoso, será inatingível
Como aponta Modesto Carone, no posfácio da edição da obra publicada pela Companhia das Letras (2000), uma anotação de Kafka nos permite, em parte, compreender este Fausto kafkaniano. O escritor de Praga teria anotado o seguinte: “Alguns livros funcionam como uma chave para as salas desconhecidas do nosso próprio castelo”.

Fato recorrente na obra de Kafka é o aspecto minimalista, a que muitos chamam de concisão. Ele parte de um fato pequeno e, à medida que o narra, vai ampliando a perspectiva, sempre em minúcia – exemplo disso é a novela A Construção, cujo ser subterrâneo narra num monólogo sua experiência em relação à construção do lugar onde vive. Contudo, ao nos depararmos com O Castelo, notamos algo poderoso, uma estrutura tangível (ou ao menos se imagina assim), embora se assemelhe no aspecto intangível ao poder apresentado em O Processo – uma burocracia que parece engolir tudo.
O castelo é poderoso, mas inatingível. Mesmo assim, K. pretende, de qualquer forma, alcançá-lo. Podemos citar o excerto abaixo, em que o protagonista resolve seguir seu mensageiro, considerando ser esta a oportunidade que aguardava para aprender como chegar ao castelo:
Jurou não se deixar deter, por nenhuma dificuldade do caminho ou pela preocupação com a volta, na continuação da caminhada: afinal, para poder ser arrastado em frente, suas energias sem dúvida bastariam. Pois o caminho podia não ter fim? Durante o dia o castelo se apresentava diante dele como um alvo fácil, e o mensageiro certamente conhecia a rota mais curta.

Precisamos ter em mente que este trecho diz respeito à fase da chegada de K., quando ele ainda não tem ideia do poder do castelo, muito menos de como ele funciona. Ainda assim, salta aos olhos uma frase tipicamente kafkaniana: “para poder ser arrastado em frente, suas energias sem dúvida bastariam”. Percebe-se o homem que não tem escolha, arrastado pelo seu tempo, cujas forças que possui, servem apenas para aceitar, não para se rebelar. Podemos ainda citar outro excerto que se localiza cem páginas depois, agora com um K. relativamente à parte de como as coisas funcionam:
O castelo, cujos contornos já principiavam a se desvanecer, permanecia silencioso como sempre, nunca ainda K. tinha visto o menor sinal de vida nele, talvez não fosse possível reconhecer alguma coisa daquela distância e no entanto os olhos exigiam isso e não queriam suportar a quietude. Quando K. fitava o castelo, às vezes era como se observasse alguém que estivesse calmamente sentado ali e dirigisse o olhar para a frente, não porventura perdido nos próprios pensamentos e com isso fechado a tudo, mas sim livre e despreocupado: como se estivesse sozinho e ninguém o observasse. Tinha no entanto de notar que era observado, sem que isso afetasse o mínimo que fosse sua tranqüilidade; na realidade – não se sabia se era a causa ou a consequência, os olhares do observador não podiam se fixar e se desviavam. Essa impressão estava hoje mais reforçada pela escuridão prematura: quanto mais ele fitava tanto menos reconhecia, tanto mais fundo tudo mergulhava no crepúsculo.
Após esta passagem, o leitor pode se perguntar, certamente, se o castelo existe, se ele é real, ou mera criação de uma espécie de ilusão coletiva, posto que não há dúvida de que os aldeões acreditem nele. Este ponto talvez seja o mais interessante do livro, o que significa o castelo? Para Max Brod, o errante K. representa “a demanda de clemência e reconhecimento a um deus absconditus”, segundo Modesto Carone. Da mesma forma, o tradutor de Kafka no Brasil apresenta outras interpretações, como a de Jedermann, considerando a obra como a alegoria do homem comum, no moderno mundo burocrático. Siegrified Kracauer afirmou que as autoridades do castelo seriam equiparadas aos poderes do inferno. Há ainda as análises existenciais e as psicanalíticas, em que a aldeia seria o nível consciente de K., e o castelo, o seu inconsciente.
Nessas horas, entre tantas interpretações, pode se recordar que Kafka dizia ser necessário escrever na obscuridade, como se fosse num túnel: “minhas histórias são uma espécie de fechar de olhos”, dizia ele.
Que significará este algo poderoso, mas inatingível? Cabe ao leitor dizer, como se cada um pudesse preencher a obra com algo de si. Eis Kafka em sua melhor forma.