O visionário, de Edgar Allan Poe, é retirado com uma pinça do grosso almanaque Histórias extraordinárias. Nas probóscides e antenas barrocas do primeiro parágrafo o escritor encabeça sua história exaltando seu protagonista:
MALFADADO E MISTERIOSO HOMEM! Desnorteado no esplendor de sua própria fantasia e tombado nas chamas de tua própria juventude! De novo, na imaginação eu te contemplo! Mais uma vez teu vulto se ergueu diante de mim… Não, não como te encontras, no frio vale, na sombra, mas como deverias estar, dissipando uma vida de sublimes meditação naquela cidade de sombrias visões, tua própria Veneza, que é um Eliseu do mar querido das estrelas, onde as amplas janelas dos palácios paladinos contemplam, com profunda e amarga reflexão, os segredos de suas águas silenciosas. Sim, repito-o como deverias estar! Há seguramente outros mundos que não este… outros pensamentos que não os pensamentos da multidão… outras especulações que não as especulações dos sofistas. Quem discutirá então tua conduta? Quem te censurará por tuas horas visionárias, ou denunciará aquelas ocupações como uma perda de vida, quando eram apenas a superabundância de tuas energias eternas?
As frases tateiam e procuram no ar, como acordadas de um sonho, afogadas e vacilantes, e já desenham todos os contornos desse animal de Poe, da cabeça à cauda. Lemos e armamos nossa atenção: por que deveríamos questionar a conduta da personagem? Quem é esse homem? Por que merece a extravagância e, ao invés disso, tem o frio?
Vamos descobrir.
O narrador nos conta que tudo começa enquanto navega sob os arcos de Veneza. Escuta um grito, que derruba o remo de seu gondoleiro e os põe à deriva. O berro sai de uma mulher: a marquesa Afrodite. Seu bebê teria caído no canal e se afogava. Seu marido (que estranho!) toca entediado um violão e lança aos servos em intervalos instruções de como resgatá-lo. A marquesa não está com os olhos fixos no ponto onde seu bebê teria penetrado a escuridão das águas: mas sim em algum lugar perdido no horizonte de prédios de Veneza. Logo surge um homem, muito jovem, que pula na água e realiza o resgate. Antes que a mãe pudesse ter a criança em seu colo novamente, contudo, alguém a tira dos braços de entrega do estranho e a leva para os interiores do palácio. E a marquesa: seus olhos enchem-se de lágrimas, e enrubesce. Antes de se despedir do jovem, contudo, sussurra algo em seus ouvidos. Assim termina o primeiro segmento da história.
A outra parte desse conto, em oposição à primeira, escura e fria, é clara e brilhante (talvez esse inseto de Poe seja da família dos vaga-lumes?) Nela, o relato continua, e o narrador oferece ao jovem herói um espaço em sua gôndola. Em troca, o narrador recebe um convite para visitar a residência do homem misterioso, no dia seguinte. Assim acontece. Ao invés de sombras e profundezas dos canais de Veneza, o conto se ilumina em pratarias e luzes de toda a extensa cultura Europeia. Descobre-se que o jovem é rico: possui em seu quarto quadros e estátuas e tapeçaria de valor para deixar zonzo o narrador quando esse entra.
Ao deixá-lo, na noite de nossa aventura, solicitou-me ele, duma maneira que reputei urgente, que o visitasse bem cedo na manhã seguinte. Logo depois do amanhecer, achei-me, por conseguinte, em seu palazzo, um daqueles imensos edifícios de sombria porém, fantástica majestade que se erguem por cima das águas do Grande Canal, nas vizinhanças do Rialto. Subindo por uma larga escadaria circular de mosaicos, entrei num aposento cujo esplendor inigualável flamejava pela porta aberta, numa verdadeira cintilação que me tornava cego e entontecido, pela sua faustosidade.
E ali encontramos o coração fluorescente do conto: conhecemos enfim sua verdadeira forma. O jovem, que na primeira parte não diz palavra, por fim, abre-se. Espalha-se num monólogo com todos os tons da despedida. Cita O Orfeo, de Angelo Poliziano. Mostra que não é o desconhecido que se pensava, pois em sua galeria tem até mesmo escondida uma pintura da marquesa. E quando percebe que passou uma hora que o sol nasceu, bebe do vinho de vários cálices, ao mesmo tempo que a marquesa em seu palácio cumpre um acordo e faz o mesmo. Ambos teriam envenenado suas bebidas.
No momento seguinte, reconhecendo o poder do vinho, lançou-se, a fio comprido, sobre uma otomana.
Ouviu-se então um leve rumor de passos na escadaria, a que logo se seguiu pesada pancada à porta. Apressava-me em evitar segunda interrupção, quando um pajem da casa de Mentoni irrompeu pelo quarto e gaguejou, numa voz embargada de emoção, incoerentes palavras:
— A minha senhora… a minha senhora… envenenada… formosa… oh formosa Afrodite!
Assim termina O visionário. O conto é de 1834.
O suicídio das duas personagens na segunda parte da história nos confirma uma realidade terrível que a primeira somente nos permitiu entrever. O que desencadeia essas mortes trágicas?
Voltemos à primeira parte do conto. Enquanto seu bebê era arrastado pelas correntezas, por quem a marquesa procurava, com os olhos voltados não à água, mas sim à altura dos prédios?
Contudo — estranho é dizê-lo! Seus grandes e brilhantes olhos não estavam voltados para baixo, para aquela sepultura onde jazia mergulhada sua mais brilhante esperança, mas fixavam-se numa direção completamente diversa. A prisão da Velha República é, penso eu, o mais majestoso edifício de toda Veneza. Mas como poderia aquela mulher olhar tão fixamente para ele, quando abaixo dela estava-se extinguindo seu próprio filho?
Não já esperava pelo homem misterioso? E por que teria se envergonhado em sua presença?
Por que enrubesceu aquela mulher? Para esta pergunta não há, resposta, exceto que, tendo deixado, com a pressa ávida e com o terror de um coração de mãe a intimidade da sua alcova, tinha-se esquecido de prender os delicados pés nas sandálias e completamente deixado de lançar sobre seus ombros venezianos aquela túnica que eles mereciam… Qual outra possível razão haveria para que ela enrubescesse?
Será que escondiam segredos antigos? O narrador estranha esses comportamentos e mesmo levanta essas perguntas. Mas durante a primeira parte, ainda não conhece (como nós) a verdadeira história; inventa assim justificativas, racionaliza os acontecimentos para construir uma realidade onde exista sentido no que vê. O narrador não pode conceber que é ele mesmo parte intrusa de um conto de amor impossível, talvez mesmo um adultério, onde os fatos tristes vestem-se de luto e o sonho, só, é dourado. Mas os indícios estão todos ali, revestidos só de asas transparentes de libélula, diante de nossos olhos, se atentos.
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Aberto, assim, sobre a mesa, esse conto agora mal respira à nossa frente. Reviramos suas vísceras, sim. Seus órgãos surgem expostos como um mapa. O pulmão enche e se esvazia devagar, no azul, vermelho e amarelo das tripas dos bichos. Com ele assim cortado é fácil saber como funciona, por que caminhos corre a linfa e qual a estrutura de suas muitas patas. Seus olhos não fecham, pois não tem pálpebras: mas sabe-se que não está acordado enquanto procuramos por significado nos caminhos que a vida encontrou em seu corpo de funcionar.
O professor caminha pela sala: a mão direita inquieta gira um anel invisível no anular da esquerda. Ouvimos suas explicações: claramente fazia suas ideias em outra língua. Seus cabelos cinza subiam e desciam entre as borboletas e escaravelhos ressecados e emoldurados na parede. Na entomologia de Piglia, secciona-se o corpo de todo conto em duas partes. Nenhum escapa. Possui sempre duas histórias. No conto moderno, de Tchekhov, Kafka e Borges, essas partes são disjuntas, movem-se pela página como coisas amarradas uma na outra. Já no conto clássico, mantêm a relação de casa e hóspede: existe uma história-carapaça, externa, dura, brilhante e quitinosa; e a história-corpo, mais mole, sensível, viscosa e rica de patas. São os contos de Poe e seu aluno, Quiroga, insetos de casca resistente, cuja função é preservar, proteger e esconder os órgãos do verdadeiro relato do conto. Fisionomicamente, o conto clássico lembra os moluscos ou os artrópodes de concha.
Por isso nos fez olhar o conto por esse ângulo. Ele nos convence:
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O conto clássico narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a história 2. A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de modo elíptico e fragmentado. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.
O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é outra coisa que a história que se conta de um modo enigmático. A estratégia do relato está posta a serviço dessa narração cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes.
E depois volta à mesa. Olha o relógio sobre a porta. Já passamos da hora por bastante. E não há muito mais o que dizer. Recolhemos esparramadas notas e cópias de contos de todos os escritores, grandes e menores, e os bisturis e as lâminas nos estojos, ainda escorrendo dentro dos livros. Levamos tudo, mas esquecemos de apagar o quadro. Até que chegue uma nova turma, os diagramas improvisados, as setas puxadas com força, a taxonomia solta na lousa, circunscrita em elipses apressadas; vai acontecer dessa floresta sobreviver num estado de vida suspensa durante meses, talvez anos até que uma nova turma chegue para dispersá-la em braçadas obtusângulas. Desvestidos de sentido à medida que nos afastamos deles, esses rabiscos são tudo que sobrou de nossas aulas. Estamos na forma como o pó do giz se acumula nos apagadores e como se entranha sob a pele do quadro-negro. O ventilador dá a última volta com as pás de sua hélice, apagamos as luzes e vamos embora, o ano se fecha em uma volta como chave, fechamos a porta de um escritório emprestado para nunca mais abri-la. Limpa essa organização particular das partículas do giz: desapareceremos.