Um painel para pensar a composição da poesia a partir da perspectiva de Harold Bloom, bem como a relação que os poetas e poetisas mantêm com aqueles que escreveram antes deles
A poesia e os poetas de todos os tempos, diz Shelley, contribuem na criação do Grande Poema, perpetuamente em progresso. Para Borges, são os próprios poetas que criam (ou recriam) seus precursores.
Para Harold Bloom, o poeta sofre literalmente de uma ansiedade de dívidas quanto aos que o precederam. Em seu controverso Anxiety of influence: a therory of poetry (1997), expõe sua interpretação psicologizante acerca da influência de um texto literário sobre outro; de como os escritores criam espaços imaginativos para si deslendo outros.
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Trava-se entre os grandes poetas um processo interminável de apropriações, o que gera uma grande “ansiedade de dívidas” ou uma “angústia da influência”. Esse processo que envolve absorção, culpa e autoremissão poderia ser repartido em seis relações, ou tipos.
No primeiro dos processos, “clinamen”, termo utilizado por Lucrécio para descrever o movimento dos átomos, o poeta “corrige” seu precursor, orientando o poema para um ponto onde ele deveria ter chegado.
A figura literária relacionada com ele é a ironia, dizer algo, mas com um sentido diferente.
Em seguida, a “tessera”, palavra ancestral que Bloom toma de Lacan, procedimento pelo qual o poeta, assumindo uma postura antitética, refaz com uma suposta meticulosidade e esmero o trabalho de seu predecessor.
A figura relacionada é a sinédoque, ou seja, a parte pelo todo.
Em seguida, temos a “kenosis”, um mecanismo de ruptura semelhante às compulsões de repetição estudadas na psicanálise. Nele, o poeta rompe com o poema-norte, capturando-o, e instaurando em seu lugar um poema que se pretende “melhor”, mas que ainda guarda semelhança com o anterior.
A figura aqui é a metonímia, a troca do continente pelo conteúdo.
O quarto tipo, o “daemonization”, é responsável não pelo poema melhorado- como na “kenosis”- mas por inspirar-se em algo que se encontra por detrás do poema, por beber da mesma fonte, dando trato diferente ao material poético.
Seu termo literário é a hipérbole.
Na “askesis”, realiza-se uma fragmentação ou mutilação daquilo que precisa ser purgado no trabalho do anterior. Pela “askesis”, o poeta se torna o intérprete por excelência do seu predecessor, a ponto de, com precisão cirúrgica, saber o que precisa ser extirpado.
Sua figura retórica é a metáfora.
Por fim, na “apophrades”, o último estágio e é traduzido como o retorno dos mortos. O poeta enxerga o precursor numa linha evolutiva e se coloca num ponto anterior ao trabalho do seu predecessor, encarando a si mesmo como peça fundamental na máquina poética de seu precursor.
É a figura literária da metalepse, em que o antecedente pode ser tomado pelo consequente e vice-versa.
Há algo de bastante perturbador nessa relação que Bloom estabelece entre os poetas e seus textos; ao mesmo tempo em que se discute o papel de um texto sobre outro texto, -a intertextualidade, no sentido lato, portanto-, parece que também estamos discutindo a relação entre as forças que movem o artesão em relação ao artefato.
Nas Metamorfoses de Ovídio, o conceito de fingere, o contínuo da sua significação, é poeticamente descrito como gesto originário. A criação do mundo partindo da ausência de forma. Mas aquele que as enforma é menos criador que um organizador do caos.
Sendo a terra uma ficção do “deus que se ocupa de um mundo melhor”, e o homem uma “ficção do semideus Prometeu”, o que se observa é que Ovídio vê deus não como aquele que retira do nada sua criação, mas como o artesão que esculpe e dá forma ao amorfo pela diferenciação.
O deus ovidiano é aquele que possui em suas mãos, a exemplo daquilo que Mário de Andrade chama de “fenômeno de relação entre o artista e o material que ele move” em seu famoso ensaio “O artista e o artesão” (1963, p. 25). A capacidade plástica de incutir a perenidade metamórfica em cada uma de suas criações.
Criar, então, no sentido de dar forma, da plasticidade que se plenifica no trabalho do poeta, é o que parece nos dizer Ovídio. Ou seja, a passagem de forma a forma através do fluxo narrativo convertendo-se em movimento e permanência. É um processo técnico e autorreflexivo que, consciente de si mesmo, de sua maneira de mover o material, é também um mergulho para longe do reino da pura técnica.
Só então os elementos destituídos de forma passariam a ter seu início devido à providência divina; partidos, separados, diferenciados em unidades distintas, possuem seu começo e em si o gérmen de sua degradação.