Poema, de Alex Andrade, é um tributo. Produto claro de um esforço afetivo, a seleta de contos faz uma genuína homenagem à composição poética, recorrendo a ecos, fragmentos e citações de autores do gênero em diversas épocas. O escritor e arte-educador carioca descobre na metaliteratura uma maneira producente de refletir a poesia alheia na sua prosa, sem se intimidar ou debilitar ambas as partes. Há um misto de influências, e não um apossamento inerente. De modo que as dez narrativas originais não carecem do conhecimento prévio das obras que as inspiraram para se sustentar. Estas funcionam ora como iluminância ora como acabamento, nunca como alicerce.
Obviamente que, para os apreciadores da poesia, os contos ganham um sabor especial. É de sobremaneira instigante (e delicioso) dar partida numa narrativa e ir colhendo as pistas deixadas pelo autor, as referências diretas e indiretas, até desvendar o poeta em questão – e, para os mais perspicazes, o poema. Andrade serve-se de seu relicário de escritores, emprestando seus nomes para narradores-protagonistas e coadjuvantes ou capturando o arroubo e a atmosfera que decorrem do ritmo e das gradações dos textos. Em todo caso, ao final de cada conto, há uma pequena apresentação do poeta e da obra precedente. Esse gesto instrutivo faz o livro e suas histórias reverberarem além dos limites internos e, por conseguinte, provocar o interesse por uma nova leitura.
Na primeira narrativa, Minhas noites com Rimbaud, a indomável inquietação do jovem poeta francês é afinada à predominante indiferença felina, um gato que leva o reputado sobrenome e divide a casa com Paulo (referência a Paul Verlaine, com quem Rimbaud teve um caso desregrado de amor), cujas noites insones são assombradas por uma melodia de piano que escapa de uma janela vizinha. Quando decide finalmente investigar a origem do som, Paulo se depara com uma revelação que contém uma parcela da soma de temas que comandam a antologia: solidão, desencanto, autoenganos, inadequação e transitoriedade, entre outros conflitos.
No ótimo Tempo de esperança, conto seguinte, é justamente o correr dos anos que posiciona o velho narrador a encarar a finitude como uma saída para as invariáveis más visitas dos filhos. Melancólico em decorrência da morte da mulher, ele acaba encontrando nos versos de Drummond (de um livro que um filho tinha deixado na casa “para ter o que fazer quando fosse vê-lo”) um sentido consolador para a viagem final.
Nota-se que, no texto supracitado, o poema Não se mate, que serviu de inspiração (O amor no escuro, não, no claro,/é sempre triste, meu filho, Carlos,/mas não diga nada a ninguém,/ninguém sabe nem saberá.), ganha uma nova tônica, uma voz introspectiva, porém sem apagar a abordagem tencionada por Drummond. Andrade lança mão de novos rumos para estradas estabelecidas, sem cambiar o destino original. Isso é uma proeza e tanto, em especial num volume de contos, naturalmente dado a pluralidade. Embora não exista uma intenção de emular um caráter romanesco, as narrativas compartilham tipos de parecença, denotando impulsos correlatos.
Isso se dá, de forma mais evidente, através da intervenção da poesia na vida cotidiana. Todos os personagens são gente comum, sempre às voltas com inquietações e problemas mundanos. No entanto, por mais que se imagine a poesia como um sopro delicado e harmonioso, não há transmissões edulcoradas do fluxo poético na vida desses indivíduos. No máximo, revela-se uma saída paliativa, um breve acender de luzes. Vide os contos Bandeira, onde uma garota de programa encontra refúgio na sonoridade dos versos de Manuel Bandeira contra os incessantes abusos de um gigolô, e Poema, um repentino encontro de amor e desejo num shopping, imantado pela leitura das “palavras doces” de Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Fernando Pessoa.
A solidão é um cão que ladra e morde é um experimento narrativo. Andrade apresenta duas histórias, sob o mesmo título, diferenciadas por sutilezas, entre as quais, o tom da voz narradora. Uma dialoga com Torquato Neto, e outra com Paulo Leminski. Há ainda uma citação forasteira a Memórias de Emília, de Monteiro Lobato, de onde provém um dos parágrafos mais radiosos.
“A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais. É portanto um pisca-pisca.”
Poema traz também referências a escritos de Ferreira Gullar, Mario Quintana, Luiz Tatit e Adélia Prado. Todos bem acolhidos pelo autor, que trata com elegância e compreensão devida a sua linguagem e a alheia, contextualizando essas “reinterpretações” num volume que agrada tanto pelo produto fino quanto pela inestimável matéria-prima. Embora tenha optado por fazer um tributo ao alto escalão da composição poética, Andrade tem domínio técnico de sobra para legitimar seus próprios mundos. Sua prosa tem a precisão e o esmero de um belo poema.
Poema
Alex Andrade
Confraria do Vento
Páginas: 173