A ponta do iceberg

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Hemingway foi mestre em criar um iceberg com sua escrita

A escrita de Hemingway
A escrita de Hemingway

Ricardo Piglia explica que o conto moderno contém duas histórias: uma aparente e outra secreta. Cabe ao leitor investigar o que há por debaixo do tapete.

No conto “Os pistoleiros” (tradução de José J. Veiga), clássico de Ernest Hemingway, o ex-boxeador sueco Ole Andreson recebe a notícia de que dois homens vão matá-lo e responde: “nada se pode fazer”. Na superfície, o leitor vê uma dupla de matadores profissionais no encalço dum boxeur aposentado. O problema é que o alvo aceita seu destino. Por que? A verdade está sob o nível do mar, onde só se vê a ponta do iceberg.

No ano de 1964, o diretor Don Siegel (Fuga de Alcatraz) lançou uma versão do conto para o cinema. Em Os assassinos, Charlie (Lee Marvin) e Lee (Clu Gulager) invadem uma escola para cegos com a missão de dar cabo do professor Johnny North (John Cassavetes). Assim como Ole Andreson, ele é avisado de que dois chacais estão à sua caça e decide não resistir ao ataque. Os mercenários percebem a passividade de sua presa e decidem investigar a trama obscura que Piglia aponta como o grande trunfo das narrativas curtas. A empreitada leva a um quebra-cabeça que envolve o mundo do automobilismo, uma femme fatale e um golpe milionário arquitetado pelo vigarista Jack Browning (interpretado por Ronald Reagan, que viria a ser presidente dos Estados Unidos).

É interessante ver os trabalhos realizados por escritor e diretor. Hemingway foi mestre em explorar o que a literatura tem de melhor: deixar coisas por dizer. O leitor nunca saberá qual motivo fez Ole Andreson perder as esperanças. Siegel optou por fazer um excelente filme de gangsteres, juntando as peças do enigma com os diferentes pontos de vista de cada personagem.

Quando o quadro se completa, descobrimos que um homem não precisa estar morto para deixar de viver.

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