Mais uma do baú das coisas que deixei passar.
Mês passado, a cantora Valesca Popozuda anunciou que pretende gravar um clipe inspirado no livro Madame Bovary, do Gustave Flaubert – a obra critica ferrenhamente a sociedade burguesa do século XIX. Em sua melhor pose de escritor em capa de livro, ela postou no instagram uma foto em que lia o clássico e foi hostilizada por isso. No estilo preconceito de classe disfarçado de gosto pessoal, uma editora ironizou a capacidade de leitura e de compreensão da moça do beijinho no ombro.
Valesca tem exibido para quem quiser ver a sua carteirinha de feminista. Aplausos: ela aderiu à campanha contrária à violência sexual contra as mulheres. Inclusive, o movimento Marcha das Vadias de São Paulo tem a cantora como símbolo da liberação sexual feminina. E nisso há um ponto de interseção entre ela e Emma Bovary. A protagonista do romance, que inaugurou o realismo na literatura, sucumbiu por não ter podido usufruir de seus desejos. Quantas mulheres ainda sofrerão com isso, meu caro? De um modo anárquico, Valesca canta o direito ao prazer sexual das mulheres e denuncia a opressão machista e conservadora sofrida por elas. Vale o clipe.
Só que no discurso da cantora também há contradições. Embora proclame a emancipação das mulheres, ela também faz coro ao oposto, quando canta versos como: Quando eu te vi de patrão, de cordão, de R1 e camisa azul. As mulheres, que há séculos vem sendo assediadas a escolherem para esposo/amante alguém que possa sustentá-las (quid pro quo), somente serão plenamente livres quando alcançarem a liberdade sexual e econômica. Só assim elas poderão cantar o mantra de Valesca: Eu vou te dar um papo/Vê se para de gracinha/Eu dou pra quem quiser/Que a porra da boceta é minha!
A frasezinha acima tem um quê do projeto estético de Flaubert. O escritor sempre é lembrado pela célebre afirmação Madame Bovary, c’est moi (Madame Bovary, sou eu), dita ao ser questionado sobre a identidade de sua heroína durante o processo no qual foi acusado de ofensa à moral e à religião. E também pela expressão le mot juste (palavra precisa), que caracterizava o perfeccionismo do autor. Em busca do melhor encaixe das palavras, por cinco anos ele reescreveu o texto diversas vezes. Os versos clamados por Valesca só poderiam ser cantados daquele jeito!
Post-scriptum – Moça que nas calças do sujeito está mais interessada no volume da carteira não é diferente de uma prostituta (nada contra as meretrizes profissionais). Não, é?