O Sr. Darcy dos sonhos é, em grande parte, efeito de Lizzy
Há mais de 200 anos, Jane Austen via ser publicado, sob a autoria de um discreto “by a lady”, o seu querido Orgulho e Preconceito, o segundo em cronologia de publicação e o primeiro em crítica e público até os dias de hoje. A narrativa parece simplória: uma família, como qualquer outra da época, que vivia na dependência do casamento das filhas para não cair em total miséria e desespero financeiro. Então, surge o Sr. Bingley na região e, embora ele seja o anunciado, o centro das atenções se torna seu amigo pedante e orgulhoso, o Sr. Fitzwilliam Darcy. Grosseiro com Lizzy Bennet, a personagem central da história, ele acaba, ironicamente, se apaixonando pela pobretona e chega a pedi-la em casamento. Ela, ofendida pelos impropérios da arrogância do aristocrata, recusa-o sem quaisquer hesitações. Eis que tudo se arranja de tal maneira que ele passa a se esforçar publicamente para mostrar-se mais afetivo e gentil, ou ainda, cavalheiresco. São tantas mudanças de comportamento e caráter que, ao fim, com o final feliz que as comédias merecem, ele diz a Lizzy:
“Querida, adorável Elizabeth, quanto lhe devo! Ensinou-me uma lição, muito dura, a princípio, mas muito vantajosa. Por suas mãos recebi a humilhação que devia. Aproximei-me de você sem duvidar de que seria aceito. Sua recusa me mostrou como eram insuficientes minhas pretensões de agradar uma mulher digna de ser agradada.”
A mudança de comportamento do belo e rico jovem por causa do amor que passa a sentir por alguém a quem tão decididamente desprezava acaba por torná-lo quase que um arquétipo dos “desejos da mulher contemporânea”. Na verdade, não tenho muito o que dizer contra o Sr. Darcy, até por que, eu já o elogiei bastante em outros posts e entendo as paixonites todas. Mas tenho uma dificuldade cada vez maior em mim: será que não está claro que a história não é sobre ele?
Fico com este incômodo, pois vejo, cada vez mais, a obra de Austen sendo achatada para caber nas forminhas do esteriótipo de “relacionamento-em-que-a-mulher-se-faz-de-difícil-para-conseguir-que-o-cara-seja-bonzinho”. Chega a ser desrespeitoso tratar qualquer um dos seis romances desta forma, mas especialmente vejo isso ocorrer com Orgulho e Preconceito. A obra passou a ser sobre como existem poucos Darcys no mundo e todo o panorama histórico-social fica como mero adereço.
A obra fala de Elizabeth, a única mulher da história de uma classe subalterna que consegue mostrar resistência ao que se espera de seu gênero na época. Sem abrir mão de suas convicções, ela consegue amadurecer sem se deixar ser sugada por um sistema cruel, que confina mulheres a casamentos e relações indesejadas como forma de sobrevivência. E, inclusive, é o fato de que ela é a gota de óleo no copo d’água que faz com que Darcy perceba-se totalmente equivocado e mude. O Sr. Darcy dos sonhos, gentil, bondoso e educado, é, em grande parte, efeito de Lizzy. De alguma maneira, isso passa despercebido e o livro se torna mais um entre tantos enfiados na categoria de historinha de amor – ainda mais com um casamento no final!
Amamos o Sr. Darcy por sua capacidade de ser generoso mesmo após ser rejeitado, mas isso faz com que a mudança dele se sobreponha à força de Elizabeth, que tem a coragem de dizer “não” a dois pedidos de casamento que, para ela, são inconcebíveis. É claro que não estou aqui pra pregar que deixemos Darcy de lado, mas gostaria mesmo de lembrar que Jane Austen escrevia com protagonistas femininas fortes para as mulheres de sua época. Seria subestimar a autora se acreditássemos que o que ela queria era fazer todos nós acreditarmos em contos de fada. Se ainda amamos tanto Darcy é porque, em algum momento, nos esquecemos de que ele é o que é, ao final, por causa de Elizabeth, esta sim, o centro da história.