O que a literatura pode aprender com um diretor de cinema como Christopher Nolan?
Nos primórdios do Cinema, a influência da Literatura foi peça-chave para o desenvolvimento do gênero. Muitas das primeiras grandes produções são adaptações de romances clássicos ou roteiros explicitamente inspirados neles. Não esqueçamos, vários escritores passaram temporadas em Hollywood para fazer dinheiro.
Mas os tempos mudaram.
Hoje é o tempo em que a influência volta. A força arrasadora do Cinema enquanto meio cultural é inegável, tendo se tornado um objeto muito mais interessante do que a Literatura para a grande massa. Não é raro ver grandes escritores afirmando a influência de diretor x ou y. A literatura, porém, parece ter se tornado mais do que nunca, talvez mais do que nas eras de poucos letrados, em arte de nicho, voltada para um público cada vez menor.
Como chegamos a essa situação?
Podemos dizer que Cinema e Literatura fizeram caminhos inversos. Em 1900, a sétima arte era ainda uma arte a engatinhar. Fazer um filme era caro, trabalhoso, além de não se ter grande certeza de como se fazer. O primeiro grande clássico datado, o francês La voyage dans la lune (Viagem à lua), de Georges Méliès, é de 1902 e baseado em obras de Julio Verne. O Cinema aprendeu muito desde então, muito observando e remodelando estruturas da Literatura.
Por outro lado, a arte escrita estava no que achava ser seu auge. Só no Brasil, tínhamos a publicação de Dom Casmurro e Os Sertões. Na Alemanha, Thomas Mann surgia com Os Bruddenbrooks. Na Rússia, Tolstói ainda estava na ativa. Os cães de Baskerville, clássico de Conan Doyle, é de 1902. A literatura desabrochava como nunca naquele momento com as vanguardas.
Hoje, porém, cento e poucos anos depois, a situação inverteu-se a um nível ridículo.
Podemos tentar entender a questão por várias frentes, mas acho que seria importante apresentar a principal, aquela que fez a mudança de ambos os campos: a ligação com o público.
Se em 1900 os grandes autores escreviam pautados em grandes ideias (e é verdade), eles também tinham em mente o fato de que seus livros só seriam lidos caso tivessem algo a contar (o que também é verdade). Um bom romance, como Dom Casmurro, no qual ideias profundas são debatidas, passaria facilmente por um leitor médio pelo simples fato de que tinha uma boa história. Machado de Assis sabia que a média talvez não chegasse na profundidade contraditória de Bentinho/Bento Santiago, mas seria fisgado pelo ciumento narrador e pela dúvida: Capitu traiu ou não? Thomas Mann, idem. Os Bruddenbrooks é um romance inicial de mil páginas com uma longa e profunda análise sobre a sociedade burguesa. Os Bruddenbrooks também é a história de uma família e seus problemas.
Ambos exemplos citados acima mostram que apesar da grandes ideias, a Literatura também tinha grandes histórias a contar – ou melhor, boas formas de contar histórias ruins.
Os diretores aprenderam muito com isso. Casablanca, de 1942, talvez seja o auge desse aprendizado. Um filme com ideias sérias, rodado em meio à Segunda Guerra Mundial e falando sobre ela. A questão entre ajudar ou não a combater o avanço do Nazismo é fundamental para a obra. A história de amor que faz com que ela se desenvolva também.
Christopher Nolan, em 2015, é provavelmente um dos grandes expoentes do aprendizado. É fácil ver como ele aprendeu com os grandes filmes de suspense e detetive, assim como é fácil ver suas influências literárias. O amor pelos labirintos e enigmas (Jorge Luis Borges), por detetives durões (Raymond Chandler e James Ellroy). Nolan trabalha com temas universais e caros à humanidade: a questão da memória e da verdade (Amnésia), o que é falso e o que é verdadeiro (O grande truque), até que ponto um sonho e a realidade são o que são por nossa vontade (A origem). Isso, no entanto, não o impede de trabalhar com tramas interessantes, cheias de viradas, que quebram a expectativa da maioria. A grande sacada de Christopher Nolan é ser profundo sendo acessível – ou vice-versa.
A Literatura, de forma geral, perdeu esse conceito. Se há um momento que demarcou a separação entre arte de escrever e público foi a ascensão das vanguardas. A arte não era um objeto a ser entendido, a ter sentido, era coisa para poucos, uma massa pequena formada por intelectuais etc. etc. etc. Conceitos simples, como enredo, foram jogados fora. O crescimento do estudo linguístico enquanto área do saber só causou mais estragos. O esforço em prol da linguagem foi tamanho que tudo mais foi jogado de lado. Ulisses, de James Joyce, virou o grande marco dessa era: um livro muito citado, pouquíssimo lido. Altamente experimental, torna-se enfadonho para a grande maioria, mesmo dentre os letrados, pelo simples fato de não levar a nada. É o experimento pelo experimento.
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E meu caso não é o problema com a linguagem. Sem ela, não há Literatura. Uma boa obra é metade linguagem, metade engenho. O caso é que o engenho, no caso da narrativa, a trama e a fábula foram abandonados em favor de uma invenção de linguagem duvidosa.
Exemplifico o caso nacional, adorador de ideias vazias que nunca levam a nada além dos muros da academia, o romance Barreira, de Amilcar Bettega Barbosa (para ler o início, clique aqui). Duzentos e sessenta e quatro páginas de parágrafos sem fim (há capítulos compostos de um longo parágrafo, sem ponto final, escrito em “prosa poética”), nos quais absolutamente nada acontece. Não há ação no sentido mais básico da palavra. Não há ideias expostas. Não há nada. Apenas tediosos e infinitos parágrafos. Quem tiver coragem de abrir o link acima (e eu não recomendo), verá que é um jogo sem fim de falar e falar e falar, juntando frases e mais frases sobre frases no intuito de trabalhar a linguagem ao ponto de que nem notemos a falta de pontuação numa tentativa de lirismo. A literatura brasileira e mundial estão cheias desses tipos.
Esses autores, dados a invenções voltadas para acadêmicos (e livros assim apenas servem para esse público), poderiam aprender algo com Christopher Nolan: invenção não significa tédio, enredo ainda faz sentido, ser profundo não é ser incompreendido.