Nem é tão importante, mas por que esse trecho desse livro que você me emprestou está marcado?
Emprestar um livro pra alguém nunca é um ato inocente. Às vezes pode ser uma forma de falar ‘hey, esse autor escreve muito bem e você precisa conhecer’, em outras uma intimação nada sutil para que a gente goste do livro ou escritor em questão, e, vá lá, em alguns casos é só um empréstimo sem segundas intenções.
Talvez fosse mais adequado dizer sem terceiras intenções, porque mesmo que a gente receba um livro emprestado como introdução à obra de um autor, ou parte de um grupo de leitura, a gente nunca conhece só o livro – e sim uma parte de seu (sua) dono(a).
Vai que o livro não tem marcas, sequer um nome ou dedicatória, pode parecer tão novo como se tivesse saído agora da gráfica, ou passou por mãos muito cuidadosas antes de chegar às nossas. Talvez faça parte, vai que nem todos de um grupo gostem de marcas externas no livro e o prefiram ‘limpo’. É como um poema onde o espaço em branco também diz muito.
Já os livros marcados me parecem contar duas histórias. Uma é a oficial, seja qual for o conteúdo original, ficção, ensaio, isso qualquer exemplar do mesmo livro conta. A outra é menos declarada, depende mais de uma leitura extra, que nem as ficções com pequenos enredos dentro do principal, a espera de olhos curiosos – ou apenas desocupados querendo saber que pistas são essas.
É quando se avança página a página e ôôô, que é isso? Por que esse trecho está marcado? Deixa olhar de novo. Talvez nem seja tão importante para a história, não revele nada daquele personagem que ainda parece usar uma armadura porque a gente não sabe quem é, e, fingindo que sabemos escrever e ler tudo, esse, esse trecho grifado nem é tão bem escrito assim. É só uma esquina qualquer no enredo. Então por que justo ele está marcado a lápis, circulado tortamente a caneta, fazendo freela de banner luminoso depois de ter sido sublinhado com caneta marca-texto amarela? Dá vontade de mandar um WhatsApp mental pra quem emprestou o livro: ‘que destaque todo é esse?’.
Aí a gente veste a carapuça de detetive, vai e volta uns parágrafos na leitura e de novo pra sacar qual é a do destaque. Vai que é um livro de ensaios ou entrevistas sobre um autor admirado por quem nos emprestou a obra, e no meio daquele mar de informações tem só uma frase marcada, quase um salva-vidas. Essa frase se tornou muito cara pra quem leu. Ficção, vamos lá: tem uma fala pequena de um personagem secundário, até menos que isso, desses que somem nas últimas 50 páginas do livro e gente poderia esquecer.
Poderia, mas não vai. Essa mulher que fala só no segundo capítulo, esse homem que sequer tem nome no terceiro, meros peões narrativos perto de quem protagoniza a obra; é a fala de um deles marcada, pedindo atenção. É um pedido aceitável, talvez uma ideia inconfessa de quem emprestou o livro, que leu ali mais do que um conjunto de palavras bem construídas e se identificou – é um palpite.
Quando for devolver o livro, a gente pode até dar umas voltas na conversa até finalmente perguntar o porque daquela marcação, mas talvez não dê em nada. A pessoa pode responder qualquer coisa e voltar à minibiblioteca íntima, formada por livros “que ficam guardados num lugar à parte, isentos de juízo, libertos das leis canônicas e dos escrutínios, livros que, reabertos, evolam, como de uma garrafa mágica, a essência de algum tempo muito nosso, algum sonho, algum medo, algum amor que supomos pessoal e intransferível.” Pode ser pessoal e até intransferível, emprestando as palavras citadas; mas depois que vemos essas marcas, sabemos que não é insondável, e saber mais de quem nos emprestou o livro tem a mesma sensação de descoberta da leitura.