Por que “O Talentoso Ripley” leria Raphael Montes

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O que Dias Perfeitos, de Raphael Montes, e O talentoso Ripley, de Patricia Highsmith, têm em comum?original

Teoricamente, o romance policial em si não tem muitas alternativas para se expandir, pois, em suma, ele é 1) o crime, 2) a busca pela solução e 3) a resolução ou não deste. De todas as narrativas detetivescas que conhecemos até hoje, todas giram invariavelmente em torno desses três eixos.

Édipo ReiOs irmãos Karamázov, as obras de Agatha Christie, Georges Simenon, Raymond Chandler seguem quase a mesma fórmula.

Quase.

Se há algo que torna a literatura policial interessante até hoje não é o que ela conta, mas como o faz. Há décadas ela vem se reinventando em torno dos mesmo eixos. Ela já passou por cenários históricos, por uma metabusca, misturas improváveis com outros gêneros. Tudo nela mudou. Os detetives durões ou inteligentes deram lugar a pessoas bem menos geniais, mas não menos habilidosas. E às vezes conhecemos o crime desde o início e o que seguimos não é o investigador, e sim o investigado.

Aqui chegamos ao Talentoso RipleyDias Perfeitos.

No primeiro, o jovem Ripley é enviado à Europa para convencer Dickie Greenleaf a voltar para casa. Ambos acabam por criar uma amizade, mas algo sai errado, Ripley mata Greenleaf e assume sua identidade. Já com o romance de Raphael Montes, Téo, o protagonista, se apaixona por Clarice, sendo inicialmente rejeitado. Não satisfeito com a ação dela, ele a sequestra para que consiga conquistá-la.

(O parágrafo acima não é um spoiler, isso está em ambas contracapas).

O que torna ambos interessantes e merecedores da nossa atenção?

Aqui temos dois fatos importantes. Um deles, não tão novo na literatura policial, é o fato de seguirmos as fugas de ambos os personagens. Pode parecer bobo, mas Ripley e Téo são obrigados a dar o melhor de si, mostrando grande inteligência e frieza, para tentar conseguir chegar às últimas páginas de seus respectivos romances sem serem pegos. Quer seja pela Itália, quer seja no Rio de Janeiro, ambos se escondem e acobertam um sem-fim de pistas, marcas e problemas que aparentemente não podem ser encobertos. O grande ponto desse tipo de romance policial não é achar as pistas, e sim escondê-las. É um jogo de pega-ladrão ao contrário, excitante, pois somos levados a torcer pelo bandido, não pelo mocinho.

O outro ponto é a obsessão de ambos por alguém. Ripley se deixa seduzir pela persona de Dickie Greenleaf. O luxo o encanta, os modos de Dickie o afetam, as possibilidades sem fim o inebriam. Tudo seria maravilho para Ripley se não houvesse Marge Sherwood, uma escritora americana amiga de Dickie que não se deixa impressionar. Ela tem muitas suspeitas, a principal delas é que Ripley seja gay, e acha que a companhia dele não fará bem para Greenleaf. Ripley não consegue conduzir a situação de maneira tranquila e perde o controle com Dickie. Quer tê-lo, quer ter a vida dele, mas não pode, Marge não o deixaria fazer parte disso, convencendo o alvo da obsessão de que ele é perigoso. É esse amor doentio que leva Tom a matar seu amado e tomar o seu lugar.

Por outro lado, Téo se apaixona por Clarice por ela ser exótica ao seu mundo. Ela é livre, enquanto ele vive num mundo cheio de compromissos. Estudar medicina, cuidar da mãe cadeirante, estudar medicina, cuidar da mãe cadeirante etc. Ela é tudo que falta em sua vida, é a incerteza. Ele a aborda e é rejeitado. Não aguentando ser negado, ele a sequestra dopada dentro de uma samsonite para um tour amoroso com o intuito de fazê-la amá-lo. Porém, Clarice também tem um namorado e este parte atrás dela para entender a razão que a leva se distanciar dele. Téo não aceita essa aproximação, o que traz consequências à trama.

Ambos os protagonistas compartilham de problemas comuns. São obcecados por alguém, são rejeitados e estão dispostos a qualquer coisa. A coisa fica mais interessante nesse ponto. Os dois romances são narrados em terceira pessoa, o que não é uma grande novidade na literatura policial. Mas assim como Os ratos, de Dyonélio Machado, ambos estão tão próximos do ponto de vista do personagem principal que temos a impressão de não apenas seguir a história deles, mas suas mentes também. O uso do discurso indireto livre nos abre a mente de Ripley e Téo, fazendo-nos sentir o que eles sentem, além de nos levar a ter dimensão da grande dificuldade deles para compreender o mundo fora os seus desejos. Por consequência, os dois romances trazem grandes mistérios para o leitor, como quem são de fato Clarice/Dickie? Nunca chegamos a conhecê-los de verdade, uma vez que acompanhamos a história do ombro dos protagonistas. Seus amores se tornam mais complexos, pois nunca são destrinchados pelos outros, ficam apenas dentro do seu próprio ponto de vista, que, como o de quase todos nós, tende a estar errado.

Mas por que Ripley leria o romance de Raphael Montes?

Tom Ripley acabaria achando a ideia de carregar alguém numa mala muito mais interessante do que matá-la e esconder o corpo. Além disso, creio que ele sentiria uma compaixão única por Téo, o tipo de compaixão que apenas aqueles que passaram pelas mesmas circunstâncias podem ter.

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