“Fingir é conhecer-se.”
Fernando Pessoa
Quando se fala em heterônimos, logo lembramos de Fernando Pessoa; sabe-se, porém, que na literatura ele não foi o único a praticar a escrita apócrifa, há inúmeros casos na tradição literária do Ocidente. No próprio país de origem do poeta, essa prática era recorrente, basta rememorarmos o Trovadorismo com suas cantigas de amigo, poemas amorosos femininos escritos por homens.
É inegável, porém, que a absurda capacidade de Pessoa pensar e sentir como um outro o eleve a categoria de O Maior; não se conhece autor que tenha feito, com tanta plenitude, esse exercício de despersonalização. O poeta fingidor deu vida a vários heterônimos, os mais populares, certamente, são Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Mas há também, os nem tão conhecidos Jean Seul, Bernardo Soares, Antônio Mora, Gervásio Guedes, só para mencionar alguns.
Pessoa atribuía sua capacidade de despersonalização a um provável desvio mental, julgava-se neurastênico. No livro Fernando Pessoa, Textos de crítica e de intervenção, há um relato do poeta em que diz:
“A origem de meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos para a abulia que a histeria propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos, está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização […] Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram […]. esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.” (paginas 202-203)
Esta tendência orgânica e constante para a despersonalização é instigante e atraente, não é à toa que o autor tenha uma infinidade de leitores e admiradores. O escritor Antonio Tabucchi, italiano de Pisa, especializou-se em Língua e Literatura Portuguesa após ter contato com a obra de Fernando Pessoa, tornando-se um de seus tradutores para o idioma italiano. Sua paixão pelo poeta fingidor e por Portugal foi tão grande, que migrou para Lisboa, terra em que viveu durante anos e faleceu em março de 2012.
À primeira vista, Noturno Indiano é um convite à literatura de viagem. O leitor acompanha o narrador-personagem na sua peregrinação em busca de um amigo: o português Xavier. A única informação que temos a respeito do “desaparecido” é que ele foi para a Índia e nela se perdeu.
Em nota, nas primeiras páginas do romance, Antonio Tabucchi fornece o itinerário feito pelo protagonista. O leitor, junto ao narrador, visita lugares como Bombaim, Madras e Goa. Destaco a importância desse roteiro na história, pois, através dele, Tabucchi apresenta-nos uma Índia de incontáveis contrastes: luxo e miséria (hotéis pomposos opondo-se a inferninhos, casas de passagem de quinta categoria); fé e ateísmo (contato do narrador com peregrinos rumando a templos jainistas; ao passo que encontra um médico que se diz ateu e afirma que não há pior maldição na Índia); o eu e o outro (o narrador em busca do “outro”, o amigo).
É também pelo roteiro de viagem que constatamos que, no desassossego do reencontro, ao invés de se aproximar de Xavier, o narrador se distancia. Cada pista conquistada parece apagar-se.
Além da importante questão do ambiente e de suas disparidades, há, neste romance, elementos metalinguísticos e, também, uma escancarada transmutação entre escritor e narrador: a vida de um parece se misturar à vida do outro. É uma verdadeira multiplicidade identitária. Assim como o escritor Antonio Tabucchi, o narrador desta novela também é leitor e admirador de Fernando Pessoa.
À medida que nos aprofundamos nas entrelinhas, constatamos que essa viagem é em vão, notamos que o amigo não será encontrado. A primeira conclusão a que se chega é que essa é uma narrativa da busca de si mesmo, que o amigo Xavier “não existe”, que na verdade é uma duplicata do narrador. A questão do duplo fica evidenciada quando o viajante pede ajuda a um vidente para encontrar o amigo, e esse lhe diz que ele é o outro. Em Noturno Indiano, o duo protagonista-amigo está além do espaço, algo que nos remete a uma das inúmeras definições que Pierre Brunel escreve a respeito do duplo. No Dicionário de Mitos Literários, lê-se:
O personagem pode viver simultaneamente em duas épocas, pode estar em dois lugares, vive duas ou mais vidas ao mesmo tempo. […] O mito do duplo torna-se o meio de expressar o contato, para além do eu, entre duas vidas, entre duas culturas: o encontro do Oriente com o Ocidente e aquele do Novo Mundo com o do Velho Mundo. Em cada ocasião, a viagem no espaço é também uma viagem no tempo (dualidade espaço-temporal). (página 283)
Em Noturno Indiano, o duplo surge como o meio para expressar o contato de duas culturas, de duas vidas. A heteronímia serve para romper um provável isolamento do narrador e “criar uma mentalidade, uma personalidade diferente da própria e, sobre essa base, uma obra de arte” (André Ordoñez). Aparentemente, ao final do livro, com todas as pistas apagadas, o leitor se encontrará com um término anticlímax. O fim é perfeito: a não concretização da busca é a vitória do imaginário sobre o real. Sendo o Noturno Indiano escrito por um fã declarado de Fernando Pessoa, não caberia melhor desfecho.