Rilke estava certo, não se toca uma obra de arte com palavras de crítica, como discutíamos outro dia, a obra de arte pode apenas ser compreendida por um ato de amor. Estava pensando, antes de falar o que senti ao ler o seu conto Pianista Boxeador, é imprescindível retomar as estradas, as trilhas, as fendas que me fizeram chegar até ele, as avalanches do desejo, os atos amorosos…
Lá se foram mais de dez anos desde a nossa primeira conversa. Muitos hesitarão em acreditar que ainda lembro com detalhes. Ah, mas como eles se fazem nítidos em minha memória! Todos os movimentos e minúcias daquele dia, desde o primeiro passo antes de entrarmos no jardim, as veredas e os caminhos que sempre se bifurcam… o vento batendo nas folhas do papel universitário (você gostava de escrever à mão) a cor da sua camisa, a calça de um jeans escuro, pouco desbotado, o cheiro de confort (é, você naquela época levava as roupas para sua mãe lavar), as mãos com as unhas bem aparadas e algumas cicatrizes antigas – eu gostava de observar as mãos dos homens que escreviam -, a tonalidade da sua voz, as curvas acentuadas e perfeitas das vírgulas, os pontos, os travessões, como você lia bem, como eu admirava sua voz ecoando entre as árvores e as plantas rasteiras! Ainda gosto quando pronuncia pausadamente as sílabas do meu nome.
Sim, nem tudo era festa, em algum lugar havia professores lendo contos consagrados, havia professores ensinando teoria, havia alunos fazendo comentários geniais e indecifráveis, havia alguns professores PHD em Literatura, entretanto jamais aprendi tanto sobres as estruturas, o tempo, o espaço, o cenário e as ranhuras do conto quanto naquela tarde. Fazia sol, mas as sombras das árvores amenizavam o calor, eu suava, no entanto, era mais medo e admiração daquele autor que se fazia, que nascia explicitamente na minha frente, lindo e nu, e eu ainda tão indecisa sobre a escrita, as palavras guardam desenhos e labirintos inusitados. Que estranhas paixões nos levam ao aprendizado…
Naquela tarde você me ensinou sobre os cubículos escondidos por trás das casas escuras, sobre os porões imundos que, às vezes, nossa alma esconde, sobre as escadarias que levam a esses porões: “Talvez tudo tenha começado exatamente naquele momento, quando comecei a descer as escadas pra fugir do teu quarto e continuei a descê-las, mesmo quando cheguei ao porão. E continuei a descê-las, mesmo quando não havia mais escadas…”.
Sobre as decisões que tomamos e sem perceber nos tomam por inteiro: “Quando saí da sua casa naquele dia percebi que não havia mais jeito, que não havia mais um meio de voltar àquele passado onde havíamos sido felizes, porque eu, sempre eu, tinha destruído tudo outra vez e, dessa vez, senti-o, era para sempre. Então fugi.”
O seu texto era tão real e verdadeiro que quase suspendi sua camisa para ver se também brotavam rosas vermelhas na sua barriga, como aquelas que nasciam no seu personagem. Isso me fez recordar Cortázar em Valise de Cronópio: “Muito do que tenho escrito ordena-se sob o signo da excentricidade, posto que entre viver e escrever nunca admiti uma clara diferença…”.
Poderia dizer que você era um marginal, isso, essa denominação lhe caía muito bem, porém, tanto eu quanto você sempre detestamos rótulos, porque eles explicam uma parte e escondem tantas outras… A sua escrita era violenta como um soco no estomago: “Por pura maldade atirei num cachorro branco que latia à noite na rua Guaianases.”. Mas, o seu Pianista Boxeador também era terno como as manhãs brancas e quase quentes de abril: “Longe de você, das luvas, das teclas, toda a energia boa ou má que existia em mim e que poderia se transformar num beijo terno, num bom cruzado no ringue ou numa canção bonita se transformava em atos vis e criminosos”.
O seu conto era um tratado sobre o carrasco e simultaneamente um tratado sobre o filantropo. Então, ao lê-lo, entrei em um estranho jogo e nesse jogo percebi: nenhum homem pode ser inteiramente lodo. O homem é esterco, e por ser esterco faz germinar sentimentos divinos: “(…) vi que o nódulo havia explodido e que de dentro dele, além do pus, saía um pequeno pedaço de tecido vermelho.”
Eu poderia ter pedido a mão de Júlio Cortázar se ele lesse Axolote ao pé do meu ouvido, ou bateria à máquina todos os escritos de Borges, quem sabe me apaixonaria perdidamente por Rubião, se ele me levasse até aquele banquinho escondido dos olhos curiosos e me lesse Bárbara, mas coincidiu de naquele dia eu ter encontrado você e você ter lido a primeira versão de Pianista Boxeador, acho que era dedicado a sua antiga namorada, nem tudo é tão perfeito assim. No mesmo instante, pensei: “A escrita tem estranhas formas de nos capturar, agora estou destinada a escrever o resto da minha vida, comprar livros, lê-los, rasurá-los, discuti-los. Agora estou destinada a ler o resto da vida os manuscritos de Daniel Lopes…”. Que estranhas paixões nos levam ao aprendizado…
Trecho do conto ‘Pianista Boxeador’, de Daniel Lopes
Naquela manhã chuvosa de domingo em que te perdi pra sempre. Talvez tudo tenha começado exatamente naquele momento, quando comecei a descer as escadas pra fugir do teu quarto e continuei a descê-las, mesmo quando cheguei ao porão. E continuei a descê-las, mesmo quando não havia mais escadas e eu arranquei as lajotas com as mãos e continuei a cavar e a descer até me embrenhar entre os vermes, longe das flores. Você sabe, sempre gostei das rosas vermelhas, embora aqui embaixo nunca tenha havido muitas delas.
Trecho do conto ‘O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas’, de Márcia Barbieri
Eu jamais deixaria que ele me visse, não assim, onde eu não era normal, onde a duração do tempo se distendia nos meus pequenos-lábios, pensei na solidão dos ornitorrincos… na feiura incompreensível dos peixes abissais… nas dobraduras se desdobrando na minha pele fina. De novo os ornitorrincos e os peixes abissais. Eles como eu não eram daqui e eu pensei: é bem estranho ser estrangeira no próprio corpo é bem estranho ser estrangeira no seu país é bem estranho estar sitiada nas escórias da própria carne é bem estranho conhecer apenas as superfícies das coisas inanimadas.
Márcia Barbieri é paulista, formada em Letras e mestranda em Filosofia. Tem textos publicados em várias antologias e nas principais revistas literárias brasileiras. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (independente), As mãos mirradas de Deus (Multifoco) e o romance Mosaico de rancores (no Brasil, pela Terracota, e na Alemanha, pela Clandestino Publikationen). A Puta (editora Terracota) é o seu mais recente livro. O conto O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas foi publicado na Zunái – Revista de Poesia e Debates.