Meu intuito era falar sobre um conto de Osman Lins, dos tantos que compõem Nove, Novena. E a razão dessa escolha é fácil: admiro em igual medida a poética e a técnica de Osman, o arroubo formal desse autor. Possibilidade consequente, pensei também em falar de algum dos contos de Breves Entrevistas com Homens Hediondos, de David Foster Wallace, pelas mesmas razões, a conciliação entre a estratégia formal e o conteúdo, que, no caso de Wallace, se realiza num estilo ímpar, verborrágico e cheio de arestas. Entretanto, ao me dedicar à releitura desses livros, alguma coisa faltava. Voltei à estante e me deparei com Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu.
Esse encontro me reportou à primeira vez que li esse livro: um evento acachapante que abriu um universo literário apenas entrevisto, pois me apresentou a possibilidade de criar camadas nos textos. Certamente Lins e Wallace têm contos mais sofisticados, mas foi Caio quem primeiro me acertou o soco da inquietação – e os outros dois (entre tantos) me forneceram elementos para aprofundar essa descoberta inicial.
Publicado em 1982, Morangos Mofados é o quarto livro de Caio Fernando Abreu e desde então é tido como referência do gênero conto – sempre renegado no Brasil. O autor conseguiu trazer ao chão da realidade as inquietações abstratas de Clarice Lispector (de quem era fã confesso) ao entremeá-las a anseios cotidianos e ordinários e debates ideológicos que marcaram o processo de abertura política do país[1]. Por meio de soluções formais muito interessantes, uma poética mais coloquial se comparado à Clarice (mas nunca simplista) e outra forma de encarar as dores e frustrações ou alegrias e descobertas, Morangos Mofados é um livro paradigmático.
Cheguei ao livro: vamos ao conto. Gostaria de comentar Pela passagem de uma grande dor.
Em linhas gerais, Pela passagem de uma grande dor é a história de um telefonema entre um homem e uma mulher. A perspectiva que temos é a do rapaz, que, num começo de noite em seu apartamento, algo entediado ao som de Erik Satie, atende a uma ligação. Insone e agitada, ela tenta convencê-lo a se encontrarem, mas ele não demonstra interesse e o telefonema transcorre corriqueiro, variando entre assuntos irrelevantes como a camada de ozônio ou uma bula de chá.
Lançando mão de uma tensão constante, uma iminência que não se realiza, Pela passagem de uma grande dor transcorre sem nenhum grande acontecimento. Na verdade, transcorre sem que nada aconteça – e é justamente isso o grande trunfo do conto e uma das características mais marcantes da obra de Caio Fernando Abreu.
Tal como a teoria do iceberg de Hemingway, esclarecida por Ricardo Piglia em Teses sobre o conto, que propõe que “o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão”, a história secreta do conto de Caio concentra toda sua força, é no subtexto que profundas ações acontecem.
A chave do texto está nos pequenos gestos dos personagens. A necessidade que ela tem de encontrar com seu interlocutor, o descaso dele para com ela, o grande vazio que sucede uma tarde de cocaína, uma frase sem significado aparente em meio ao diálogo e prontamente abandonada: esses pequenos acontecimentos são apenas a ponta do iceberg, os subterfúgios que os personagens lançam mão para resvalarem naquilo que de fato causa a pasmaceira e angústia na qual se encontram. Se por um lado lemos claramente a desilusão e a melancolia em que vivem e como passam por uma grande dor que não sabem (ou não estão acostumados a) expor, muito provavelmente devido ao contexto de duas décadas de repressão, por outro lado, no subtexto, o conto trabalha temas como sobre drogas, aborto e sexualidade sem expor diretamente qualquer um deles.
Uma solução formal mais que apropriada: o conto é estruturado tal como a personalidade/realidade desses personagens, que, incapazes de lidarem frontalmente com temas caros, optam por apenas sugeri-los. Ainda que não seja um dos contos mais comemorados de Caio, minha escolha aconteceu não apenas por ter me marcado quando o li pela primeira vez, mas sobretudo por ter me ensinado na prática o que Hemingway apud Piglia propunham. A leitura desse conto foi tão impactante que em meu livro (Beijando Dentes), o conto Às quatro e meia da manhã é uma tentativa em estabelecer uma relação com o conto que comento agora, quase que o revisitando.
Minha intenção era realocar um casal de personagens num momento posterior àquele de Caio, no qual a tensão chega à superfície uma vez que existe a possibilidade de falar abertamente sobre qualquer coisa – e demonstrar que a liberdade não garante um diálogo franco. Um casal discute em um telefonema, mas, num exercício formal, tiro dos travessões as agressões que desejam e não realizam: temos acesso a elas por meio de uma terceira pessoa onipresente, que oscila entre os personagens expondo suas reais intenções que são encobertas pelas frases simples de um diálogo que pouco diz.
Seja como for, recomento fortemente a leitura de Morangos Mofados. Se o tempo for curto, recomento a leitura de Pela passagem de uma grande dor, que pode se estruturar formalmente em subtextos, mas o impacto de sua leitura não fica em nada subentendido. E recomendo ainda a leitura de Nove, Novena e Breves Entrevistas com Homens Hediondos com o mesmo entusiasmo.
[1] Sobre o tema, recomento a dissertação de Luana Teixeira Porto, Fragmentos e diálogos: História e Intertextualidade no conto de Caio Fernando Abreu. Porto Alegre, 2011.
Trecho do conto ‘Pela passagem de uma grande dor’, de Caio Fernando Abreu
Ele abriu a boca, mas antes de repetir as mesmas coisas ouviu o clique do fone sendo colocado no gancho do outro lado da cidade. O disco chegara novamente ao fim, mas antes que recomeçasse ele curvou-se e desligou o som. Em pé, ao lado da mesa, amarfanhou o papel amarelo e jogou-o no cinzeiro. Depois soprou as cinzas do rosto do rapaz. Algumas partículas caíram sobre a foto da mulher. Andou então até o pequeno corredor, curvou-se sobre a planta e com a brasa do cigarro fez um furo redondo na folha. Respirou fundo sem sentir cheiro algum.
Trecho do conto ‘Às quatro e meia da manhã’, de Maurício de Almeida
eu digo, pois percebo que ele suspira afogando o bocal do telefone no rosto para me chamar a atenção mas, sinceramente, não espero que esteja tudo bem, e sei que esse suspiro era para me acusar de ter lhe roubado o sono, ele quer me culpar por não ter dormido essa noite e a noite anterior, e de algum modo realmente me culpo, mas não diria a ele, tão egocêntrico, ele, tão vingativo a suspirar confuso do outro lado do telefone para me culpar, ele, tão estúpido a responder.
Maurício de Almeida. Campinas, 1982. É autor de Beijando dentes (Record, 2008), livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007 na categoria contos. Participou das coletâneas Como se não houvesse amanhã (Record, 2010), O Livro Branco (Record, 2012) e do 4º número da Machado de Assis Magazine, no qual seu conto Duelo foi traduzido para o espanhol. Seu primeiro romance, editado pela Rocco, tem previsão de lançamento para 2015. Mais: Une chanson pour moi.