Quando estava começando a escrever Réveillon e outros dias, reli muitos de meus livros de contos preferidos, feito um leitor-aprendiz que observa os mestres. Dessas leituras (e de outras), poderia separar muitas narrativas breves que me marcaram muito e até hoje me comovem: A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa; A imitação da rosa, de Clarice Lispector; A noite de barriga pra cima, de Júlio Cortázar; O milagre secreto, de Jorge Luís Borges; O homem célebre, de Machado de Assis; e tantos outros. Escolher apenas um conto para comentar entre esses é, de qualquer maneira, uma pequena injustiça.
Selecionei O peru de natal, de Mário de Andrade, porque, além de ser um de meus favoritos, foi um dos quais mais marcou minha formação como escritor. A história, presente no livro Contos novos, é uma verdadeira aula sobre valorização de detalhes, análise e construção de comportamentos das personagens, uso de figuras simbólicas e precisão nas descrições breves porém certeiras. Além disso, o foco em relações pessoais e afetivas dentro de uma família é um assunto que sempre me interessa como tema. O conto já começa com uma exibição poderosa dessas características nos dois parágrafos iniciais:
“O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequência decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro sangue dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado para sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da família.”
Não existe uma receita certa para se produzir um conto, mas creio que muitos escritores poderiam aprender algo com uma introdução como essa. Logo na primeira frase é colocada de forma clara a situação e o que será o desenrolar do conto. A descrição a seguir também é notável: a “explicação” de como a família é feliz acaba por mostrar que a felicidade é justamente o que falta àquelas pessoas. A justificativa expõe na verdade o seu avesso – a própria negação – de forma muito elegante.
No segundo parágrafo, a frase “Morreu meu pai, sentimos muito, etc.” demonstra como o uso da linguagem pode formar um sentido dramático muito forte em um detalhe sutil. Essa falta de disposição do filho-narrador quanto ao luto, especialmente pelo desprezo expressado com o “etc.” final, funciona melhor do que qualquer tentativa de tentar descrever o seu desdém. Se o autor colocasse-o dizendo que ele não havia se comovido, ou coisa assim, poderia ter deixado claro o sentido da mensagem, mas fazer o personagem agir de fato como alguém que não se importa é bem melhor, enquanto transmissão da sensação da mesma mensagem. Palavras também são ações, o material do qual o conto é feito também é seu conteúdo dramático.
Outra descrição muito boa desse início é aquela que chama a memória do morto de “obstruente”, e diz que ela havia “sistematizado para sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da família.” Uau, isso é uma frase de dar inveja, coisa de quem cuida muito bem do que escreve. Faça o exercício de pensar outras versões desse trecho, com palavras correspondentes que poderiam substituir, por exemplo, a expressão “sistematizado” e você vai ver que a frase (e o conto) perdem grande parte de sua força, por conta da eleição de um termo ou outro. Essas escolhas são fundamentais, como dizem, e é verdade especialmente em relação às artes que lidam com a construção verbal: não existem sinônimos.
Ao longo da narrativa, há vários belos momentos como esses, que eu poderia destacar aqui. Juca, o narrador-protagonista, decide que no Natal a família deverá comer um peru, como forma de se permitir um “aproveitamento da vida”, impossível com o pai vivo. A festa, com a ave servida, torna-se “uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai”, o que simboliza, claro, um conflito entre a miséria autoimposta pela figura do pai e a superação de sua força, através de prazeres e alegrias às quais a família poderá se entregar com a morte do patriarca.
O embate final “entre os dois mortos” representa uma excelente análise sobre comportamentos humanos e é, além de tudo, muito divertido e simbólico. Comovidos com a abastança, os parentes começam a chorar (lembre-se que “a memória obstruente do morto havia sistematizado a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da família”). Juca os repreende por não se permitirem uma alegria. Como sua resistência agrava a situação e o pranto, ele percebe que é melhor fazer o contrário. Para de gabar o peru – o que fazia a figura de seu pai “crescer vitoriosa” entre a família a sentir por sua falta – e assume a postura contrária (e contraditória), que é justamente a que lhe permite alcançar seu objetivo:
“E nem sei que inspiração genial de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
– É mesmo… Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.
E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.”
Unir no mesmo conto uma alegoria tão simples e ao mesmo tempo tão poderosa, uma análise perspicaz de comportamentos humanos, o uso tão elegante de descrições e detalhes, o humor e a comoção, bem como construções de linguagem inovadoras e muito funcionais para a narrativa e para a dramaticidade faz de O peru de natal uma aula sobre a escrita. Dessas das quais a gente não sai da mesma maneira que entrou.
Trecho do conto ‘O peru de natal’, de Mário de Andrade
“Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa.”
Trecho do conto ‘Réveillon’, de Rafael Gallo
“Era a sua primeira participação em algum evento social sem a esposa, o primeiro contato direto com outras pessoas desprovido do amparo dela. Antes desta festa de Réveillon, a última reunião familiar fora justamente em seu velório e enterro, solenidades nas quais – apesar de morta – ela estava ali. Seu corpo, já um monumento apenas, invocava as atenções; os pêsames manifestados e as histórias rememoradas preenchiam as interações pessoais sem nenhum esforço. O próprio luto, subsequente, proporcionara ao viúvo uma espécie de ocupação: substituíra, entre as tarefas domésticas, os cuidados com a esposa pelos pesares à sua partida. Se o fantasma dela retornasse algum dia, perguntando de forma corriqueira ‘O que você fez hoje?’, provavelmente ele responderia: ‘Olhei pro teu retrato’.”
Rafael Gallo é autor de Réveillon e outros dias, livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Prêmio Jabuti, ambos na categoria Contos. Tem contos publicados em revistas e antologias, como a Machado de Assis Magazine, na qual foi publicada uma tradução para o espanhol de Réveillon, cujo trecho pode ser conferido acima. Seu primeiro romance, Rebentar, será publicado pela editora Record em 2015. Mais: www.rafaelgallo.com.br.