Proust e as pitangas

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Proust

“Só há uma maneira de escrever para todos, é escrever sem pensar em ninguém, escrever para o que existe em nós de essencial e profundo.” Essa afirmação é de Marcel Proust e foi tirada do livro Contre Sainte-Beuve, escrito entre os anos de 1908 e 1910, mas publicado somente depois dos sete volumes que compõem Em Busca do Tempo Perdido, cuja primeira parte, No caminho de Swann, completou 100 anos na última quarta, 13. E talvez em nenhuma outra passagem da literatura mundial a máxima contida nessa frase seja tão verificável quanto à da clássica cena das madeleines.

Marcel, o protagonista de Em Busca do Tempo Perdido, um aspirante a escritor, ao provar o sabor das madeleines (bolinhos em formato de concha), com chá, é levado, espontaneamente, a relembrar a infância na fictícia cidade de Combray. Quem nunca passou pela experiência de comer algo ou sentir um aroma e ter as reminiscências ativadas, sendo remetido há outro tempo, lugar, situação? Mirando no particular, no ‘escrever para o que existe em nós de essencial e profundo’, Proust acertou em cheio o universal, ao “Só há uma maneira de escrever para todos (…)”.

Pitangas são as minhas madeleines, sempre me fizeram relembrar uma parte da minha infância. Ativam as memórias do meu HD. Eu; meu irmão, Alisson; e meu primo, Alan, tínhamos como um dos nossos passatempos preferidos subir na pitangueira da casa de minha tia. Até hoje me pergunto como a pitangueira podia suportar o peso de três corpos que, embora fossem de meninos entre oito e onze anos, se deslocavam entre os galhos como se fossem de acrobatas.

Passávamos manhãs ou tardes inteiras no pé de pitanga. Numa ocasião, a pitangueira estava carregada. Batemos o recorde: cem pitangas. O apogeu foi geral. Mas também tínhamos disputas individuais. Quem conseguiria pegar mais pitangas em menos tempo? Era um dos nossos jogos de meninos. Meu irmão que é um ano mais velho do que eu e dois do que meu primo levava certa vantagem. Por sua vez, meu primo era mais ágil e por vezes se sagrava vencedor. Eu já era o mais lento e por isso vitória minha, era zebra.

Mas um dia veio à glória. Brotou na parte mais alta da pitangueira uma pitanga pretinha, de fazer a boca salivar. Os dois, mais prudentes, sem ter que provar nada a ninguém e avaliando que não teriam condições de vencer a disputa, resolveram fazer um armistício, já contando com a minha derrota anunciada. Mas dessa vez eu tentava decidido. Não. Eu não subi na pitangueira encontrando os apoios imperceptíveis até a pitanga. Não. Eu simplesmente balancei com toda a força que tinha a pitangueira e antes que os dois pudessem se dar conta da minha artimanha peguei no ar a minha vitória, como um catcher de beisebol, e a pus na boca, enquanto os dois se entreolhavam boquiabertos. Por essas e outras coisas, pitangas me fazem lembrar a infância.

A pitangueira ainda vive. Das poucas vezes que hoje encontro com ela, não é raro nascer um manancial de lembranças. As nossas memórias mais profundas podem vir à tona quando estimuladas pelo gosto de um doce, pelo aroma de uma fruta, pela letra de música. E essas lembranças, que são involuntárias, nos libertam das amarras do tempo, uma vez que fazem coexistir o presente e o passado simultaneamente.

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