A arte não “serve” para nada, mas isso não é um problema. Entenda a importância da arte, apesar de ela ser, no fundo, “inútil”.
A provocação de Dostoiévksi
O que vale mais: um par de sapatos ou Púchkin? Uma pergunta dessas pode parecer estranha, mas foi um questionamento verídico na sociedade europeia da metade século XIX. Tal questão foi trazida à tona por Dostoiévski. Sobre isso, o autor escreveu em resposta a um jornal do período.
Doravante os senhores devem tomar como regra que as botas, em todo caso, são melhores que Púchkin, uma vez que se pode passar sem Púchkin, mas de maneira nenhuma sem as botas; consequentemente, Púchkin é um luxo e um absurdo.
Mas por que Púchkin? E o que os sapatos têm a ver com o autor? Ora, é uma discussão mais profunda do que parece. Ela diz respeito ao utilitarismo na arte.
Os sapatos são vestimentas. Podem ser usados para proteger os pés e permitir que uma pessoa vá mais longe. E Púchkin, qual o seu uso? O que pode o grande poeta russo fazer pelos homens?
Na verdade, nada. Não se pode colocar Púchkin ou Goethe nos pés e andar sobre as pedras. E não há nada de errado com isso.
A arte não “serve para nada”. Mas isso não é um problema. Um dos principais pontos para entender a importância da arte é entender que ela é, no fundo, inútil. Nesse retalho de grandes escritores, proponho uma breve discussão sobre Púchkin e um par de botas — e me escuso de outras discussões, como a própria “o que é a arte?”.
Toda arte é inútil
Por que as coisas têm valor? É certo que, para muitos, o “valor” está atrelado à “utilidade”. “Para que serve isso? ”, é uma frase que qualquer um já deve ter ouvido falar. É muito importante notar que há coisas a priori inúteis, mas isso não quer dizer que não tenham valor — muito pelo contrário. A arte é uma delas.
Essa ideia seria defendida pelo intelectual inglês Roger Scruton. Em diálogo com outro grande escritor britânico, Oscar Wilde, ele traça os limites do “uso” das obras de arte. O autor de O retrato de Dorian Gray abre essa obra com uma provocação: “toda arte é completamente inútil”.
O autor inglês, com essas palavras, não pretendia desmerecer a “arte”, mas elevá-la aos mais altos patamares. Scruton explica isso no documentário “Por que a beleza importa”:
Isso me leva de volta à observação de Oscar Wilde de que toda arte é absolutamente inútil. Coloque a utilidade em primeiro lugar e você a perde. Coloque a beleza em primeiro lugar, e o que você fizer será útil para sempre. Acontece que nada é mais útil do que o inútil.
Como Nietzsche diria mais tarde, a arte é necessária para não se morrer da verdade. Ou nos próprios ecos de Dostoiévski, a beleza que salvará o mundo, sendo a estética um importante debate histórico para entender a arte.
Arte como expressão
Outras abordagens sobre a arte argumentam sobre a sua função — mas não sob um conceito materialista de função. Um dos autores que tocaram nesse assunto foi Tolstói. Em seu livro O que é arte?, o autor traz sua definição sobre o tema.
A arte é uma atividade humana que consiste em alguém transmitir de forma consciente aos outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que experimenta, de modo a outras pessoas serem contagiadas pelos mesmos sentimentos, vivendo-os também.
Mas a teoria artística de Tolstói não se limita apenas à conceituação catártica da arte. O russo vai além, questionando a função e a qualidade das artes. A produção artística não está só ligada a um ideal de beleza (por ser um ideal subjetivo), mas à função social de compartilhar os sentimentos e unir as pessoas por eles.
Apesar de exercer uma função social, a arte ainda não teria espaço em uma retórica “materialista”. Mesmo “compartilhando sentimentos”, Púchkin continuaria sendo menor que um par de botas.
A indústria da arte
Foi com o advento da Escola de Frankfurt e da teoria crítica que a arte passaria a ser vista como uma ferramenta “útil” à sociedade: a indústria cultural.
Segundo os filósofos frankfurtianos, a arte seria englobada pela indústria e transformada em mercadoria de entretenimento. A sua função passaria, como era vista anteriormente, como uma elevação de padrões estéticos e uma forma de expressar sentimentos a (também) uma mercadoria e ferramenta ideológica.
Essa nova maneira de enxergar a produção artística e cultural seria uma forma de usar uma ideologia para padronizar e massificar os gostos populares. A produção cultural é feita a partir desse momento também por uma indústria que visa, naturalmente, o lucro.
Os frankfurtianos também alertaram o caráter social da cultura e da comunicação de massas. Elas começam a ser entendidas como ferramentas de crítica e controle da sociedade — seguindo padrões para influenciar. Muitas ditaduras usariam as artes como modo de perpetuar suas ideologias: da produção nacional-socialista à “política do espírito”, de Salazar.
O que vale mais: a arte ou um par de botas?
Nosso retalho pode levar apenas a uma conclusão: é desleal comparar Púchkin a um par de botas. Enquanto um, na concepção materialista, deixa muito mais fácil a vida, o outro serve a outras coisas bem diferentes.
Se, hoje, grande parte da literatura e de outras formas de expressão caíram no modo de produção industrial, esse não é um motivo para acreditar no fim dos conceitos mais “ideais” da arte — e isso não é, a princípio, ruim. A crítica através do cinema e da literatura continua viva e atinge um número grande de pessoas.
O que é a beleza, a arte, e o que importa nela é uma discussão que já dura séculos — e que não poderia ser respondida agora, diferentemente da discussão sobre um par de botas.
Por fim, a arte é (ou poderia/deveria ser), por definição, inútil. Ela não “serve” para nada, no sentido popular. Mas essa é uma discussão que poderia ser estendida à eternidade.
Referências
Dostoiévski, Fiódor . Os demônios: romance em três partes. Tradução de Paulo Azevedo Bezerra. Brasil, Editora 34, 2018.
Escola de Frankfurt: contexto, objetivos, autores. Disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/sociologia/escola-de-frankfurt.htm>. Acesso em: 10 abr. 2022.
Gonçalves, Sara. O que é a Arte?, de Lev Tolstói. Museu Nogueira da Silva, Braga. Disponível em: http://cehum.ilch.uminho.pt/static/events/1387281770.pdf. Acesso em: 10 abr. 2022.
Why Beauty Matters. Direção de Louise Lockwood. 2009.
Créditos HL
Esse texto é de Eduardo Reitz, teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.