Conheça Cães da Província, romance de Luiz Antônio de Assis Brasil e o intrigante personagem real Qorpo-Santo
Cães da Província, de Luiz Antonio de Assis Brasil, lançado em 1987, conta a história de José Joaquim de Campos Leão, o Qorpo-Santo. Para quem não sabe, Qorpo-Santo foi um grande dramaturgo brasileiro, nascido no RS, em 1829. Autor de várias peças, seu reconhecimento se deu, praticamente, 100 anos após a sua morte. Além de escritor, José Joaquim foi professor, tipógrafo, vereador e, segundo muitos, louco. As excentricidades de Qorpo não passaram despercebidas numa provinciana Porto Alegre do fim do século XIX.
Assis Brasil fez uma pesquisa minuciosa e admirável para escrever Cães da Província, uma vez que o romance lhe serviu como material para obtenção de seu doutorado em Letras, pela PUCRS. Se escrever sobre Qorpo-Santo foi uma ótima ideia do autor, incluir em sua história os crimes da Rua do Arvoredo só contribuiu ainda mais para a grandiosidade dessa narrativa. Sim, em 1864 Porto Alegre foi cenário de uma terrível ocorrência: pedaços de corpos humanos em decomposição foram encontrados na residência de José Ramos e Catharina Palse. Diziam que o casal assassino fazia linguiça com carne humana e que revendia para os açougues da cidade.
É nessa atmosfera de suspense e crime, de insanidade e lucidez, de genialidade e excentricidade, que a trama de Cães da Província vai se erguendo. Qorpo-Santo, já abandonado pela esposa Inácia, que o considera um incapaz, vai aprontando das suas ao lado de seu único amigo, Eusébio. Apesar de ser considerado um lunático por toda a cidade, é com Qorpo-Santo que Eusébio se aconselha, principalmente por sua grande insegurança amorosa, por seu excessivo ciúme de Lucrécia, sua esposa. A desconfiança de Eusébio confirma-se quando um dia, ao amanhecer, ele constata que Lucrécia o abandonou:
“Eusébio, na sala mal iluminada pela chama da vela, vai constatando que o acontecimento foi maior do que pensava, a mulher sumiu com dinheiro, os cem mil réis que estavam dentro do vaso sobre o aparador. Senta-se à mesa, os cotovelos sobre o tampo, as mãos aparando o rosto. As ideias vão e voltam, negras, perturbadoras. A notícia se espalhando, a falaçada dos vizinhos, mil pessoas a darem conselhos, batendo no ombro, dizendo: coragem, essa mulher não merece tanto sofrimento.” (Página 47)
Envergonhado, não querendo ser chacota da cidade, Eusébio procura por Qorpo – Santo, pedindo ajuda:
“O caso é estabelecer uma estratégia, e para a estratégia, uma boa tática- diz Qorpo-Santo, agora senhor das suas ações e palavras, o verdadeiro amigo Eusébio, um homem que pode aconselhar. -Primo: você sabe onde ela foi? Secundo: queres que ela venha de volta? Tertio: queres tornar tudo público imediatamente? As perguntas de Qorpo-Santo, com tanta certeza e prática, deixam Eusébio desconcertado. Submerso na dor, não pensava nessas coisas de armar táticas. Mais uma vez maravilha-se com o amigo. Uma pequena luz brilha, uma esperança. Diz que não sabe por onde ela fugiu, mas desconfia que foi para os lados de Viamão, pois é certo que fugiu com o queijeiro Raimundo, que mora para aquelas bandas. Se a quer de volta? Eusébio não sabe, dificilmente ela poderia voltar sem dar na vista e mais dia, menos dia… não, não quer. Antes dá-la por desaparecida, ou morta.” (Página 50)
Com a teoria do desaparecimento de Lucrécia, a história dos crimes da Rua do Arvoredo vai se firmando dentro da narrativa. A causa do sumiço de Lucrécia teria realmente sido uma fuga com o queijeiro, ou teria sido ela vítima de José Ramos e Catharina Palse? Os restos mortais de Lucrécia estariam na cena de horror que a polícia descobrira na casa do casal ou seria tudo isso ficção de Qorpo-Santo e Eusébio? No trecho abaixo, há a ocorrência de quando a polícia descobre os corpos:
“-Um crânio. Anote aí: um crânio- dita o doutor Calado ao escrivão, mal acreditando que todas suas suspeitas se confirmam, desenterram tíbias, úmeros, costelas e espinhaços, que saem da terra do porão com exclamações de assombro do povo que a esta hora rompera o cordão policial e se apinha dentro da casa, enchendo os ambientes com o bafo da humanidade. José Ramos e a Palsen, manietados pelos guardas, assistem a tudo aquilo com desdém e ironia, ele negando saber de quem são as ossadas que se revelam a todo momento… O doutor Calado ordena ao escrivão que continue registrando e catalogando as ossamentas, atravessa o povo e, chegando lá fora, vê uma grande aglomeração junto ao poço e, antes que possa tomar pé no que acontece, mostram-lhe postas ensanguentadas de gente, são pés, braços, mãos e outros membros deitados sobre uma lona.” (Página 67)
Para muito além de crimes, adultério, há em Cães da Província uma profunda discussão sobre o que é loucura ou não, sobre teorias psiquiátricas. A psiquiatria, a “monomania”, o mal que afetava Qorpo-Santo, é bastante discutida pelos personagens Joaquim Pedro e doutor Landell. Esses médicos, além de avaliarem a personalidade do casal assassino, também avaliam o excêntrico comportamento de Qorpo-Santo. Vale destacar que, por motivos óbvios, o casal criminoso era repudiado pela sociedade, mas essa mesma sociedade repudiava Qorpo-Santo de maneira quase semelhante. Qual era sua loucura? Ser um homem divorciado, homem que não parava em nenhum emprego, homem que dizia verdades a qualquer um, inclusive às autoridades. Qorpo-Santo era discriminado por não frequentar a igreja, por escrever coisas consideradas escandalosas para a época.
Se Qorpo-Santo foi louco ou não, se os porto-alegrenses comeram linguiça de carne humana ou não, cabe ao leitor dessa história decidir. De minha parte, recomendo muito que leiam esse livro e, se puderem, aproveitem para conhecer a dramaturgia de Qorpo-Santo, precursor do Teatro do Absurdo (sua obra está disponível no site Domínio Público). E para quem gosta de História, bem contada, não deixe de ler Décio Freitas e seu inigualável “O Maior Crime da Terra”, sobre os crimes da Rua do Arvoredo.
Referência:
BRASIL, Luiz Antonio de Assis. Cães da Província. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.