Na lacuna que separa a Idade Antiga da Idade Medieval, coabita o legado filosófico de Santo Agostinho. Um homem de dois lados: antigo em sua maneira de fazer filosofia, mas também capaz de antever aquilo que seria próprio da cultura medieval. Um homem que, como muitos, se vê dividido entre o mundo sensível e o inteligível, entre a carne e o espírito.
Agostinho, já na maturidade de seus estudos filosóficos, resolve escrever sobre aquelas que seriam consideradas, por ele, como as sete artes livres. Para isto, decide classificá-las em duas espécies de saberes, os saberes do Trivium e os do Quadrivium. No Trivium estariam, para ele, os saberes da linguagem. Enquanto ao Quadrivium competiriam os saberes matemáticos. Os saberes da linguagem, para Agostinho, constituem em três das artes livres estabelecidas por ele: a gramática, a dialética e a retórica. Todas as artes deveriam ser conduzidas para a razão, sendo assim, guiadas pela sabedoria e não só pela curiosidade. Já que a sabedoria, e só ela, tem o poder de transformação, enquanto a curiosidade, em sua pequenez, seria apenas um “querer saber” superficial e disforme. Vale ressaltar que, o sentido da vida para Agostinho, aparece sempre pautado pela busca da unidade de todas as coisas em um mundo onde a multiplicidade leva tudo para o caos. Agostinho frisava que o objetivo do homem deve ser sempre o de transformar sua crença em um saber através da razão, se abstendo do mundo sensível, pois só assim poderá enxergar as coisas com clareza, dando a elas as distinções e conexões necessárias para conhece-las. A razão é a ordem do universo e deve ser utilizada, pelo homem, para o alcance do divino, da elevação. É desta forma que todas as artes devem ser reconduzidas à filosofia, já que nela estaria o verdadeiro exercício do saber e da razão. O estudo das artes liberais serviriam como instrumentos eficazes para ajudar no alcance do uno, na transição do sensível para o inteligível.
A primeira fonte das artes para Agostinho é o discurso, que é obra da razão. Pois, para ele, o discurso foi instituído por ela, como uma maneira de promover o comércio mental entre os homens. Isto é, para que os homens comunicassem seus pensamentos e conceitos a respeito daquilo que, a priori, compartilhavam: o mundo. A partir desta necessidade de comunicar o que dos homens já era dotado de razão, que foram dados nomes às coisas, ou seja, sons com significado, que reforçavam a ligação entre os homens. Foi necessário significar intencionalmente os sons, dando nomes a eles. Assim, o som é matéria, é a voz com significado, e seu ato de significar é a forma do nome. Constituiu-se assim a expressão oral, mas só ela não foi suficiente para suprir as necessidades comunicativas humanas, pois os ausentes também precisavam se expressar e não havia ainda nenhuma maneira de materializar os nomes das coisas de forma uniforme e limitada – passível de compreensão – que não fosse pela voz. Foi por essa “falha comunicativa” que a razão criou também a letra e, a partir dela, a gramática. Entretanto, a gramática apresentava uma falha: ela era capaz de passar uma mensagem, de limitar as coisas e seus nomes de maneira a repassar exatamente o que deveria ser dito sem se utilizar a voz, mas não se preocupava se a mensagem deste discurso era verdadeira ou falsa. Para reparar aquilo que faltara na gramática, que surgiu a dialética. É a arte que se preocupa com o teor de veracidade do discurso. E por isso, seria na filosofia “agostiana”, a disciplina das disciplinas. Porque não só se articula de forma a emitir ou reproduzir um discurso, mas a questioná-lo, desafiá-lo e rebatê-lo. É uma arte e, por isso, um saber, mas é ao mesmo tempo um poder e, por isso, uma ciência. A dialética não só ensina, através do seu discurso, mas ensina a aprender e a ensinar, já que está embasada na troca, na discussão de seu próprio discurso, do discurso do seu discurso e em seu discurso oposto, ou mesmo em seu semelhante ou correlacionado. Segundo Platão, a discussão provoca o crescimento das coisas, e é nessa capacidade de engrandecimento da dialética que Agostinho se apoia. Para ele, ela passa a ser motor do movimento ascensional, que possibilita a passagem de opinião para o poder – que é a ciência -, já que ela intermeia o caminho entre a opinião para a crença e para o pensamento discursivo, ou seja, a verdade, que está na episteme. A terceira arte do Trivium, a retórica, da qual Agostinho foi um grande mestre, só teria a utilidade da persuasão, funcionando como um artifício para embelezamento da linguagem. Sua função seria a de expor publicamente – de maneira didática e encantadora – um discurso, que levasse os ouvintes para a verdade e o bem, porém acabou sendo desvirtuada por sua capacidade de convencimento e indução.
Um outro pensamento platônico argumentado por Agostinho é o de que a linguagem humana tem a mera função de rememorar conhecimentos inatos – a linguagem do verbo anterior. A linguagem em sua filosofia tem, portanto, três funções básicas e imediatas, a de expressar pensamentos por meio da gramática, a de discutir e ascender o discurso por meio da dialética, e a de discursar e seduzir por meio da retórica. Mas todas elas se voltam para o aprender e o ensinar.
No diálogo De Magistro, em que se propõe a refletir sobre a maestria, Agostinho fala sobre a função que a linguagem tem de ensinar. Ele faz referência a duas funções comunicativas básicas da linguagem: ensinar e chamar à memória, própria ou de outro – de influência platônica. Assim, ele desmembra a linguagem em quatro funções: comunicação, expressão, discurso e a de compreensão e interpretação. Considerando, primeiramente, que a capacidade de se comunicar existe enquanto a linguagem existe como um sistema de sinais, e que as palavras é que significam – informam – sobre as coisas. Mas depois mudando o cenário, supondo que, sem um conhecimento prévio de cada coisa, um sinal não consegue comunicar nada, e sendo assim, com o conhecimento prévio, nada se é acrescentado ao que já se sabe da coisa. É quando Agostinho retira o valor denotativo da palavra e abre, para ela, o caminho da alusão. Ele passa a questionar a função da linguagem como um instrumento de conhecimento. A informação que a um nome passa de uma determinada coisa, apenas faz referência àquela coisa, mas o conhecimento a seu respeito só virá com sua própria experiência direta ou intuição. A linguagem, a este ponto da filosofia agostiniana, recebe um novo significado: a de provocadora. Da transformação e da ascensão humana.