
O que aconteceu para que Os Lusíadas, de Camões, escapasse à pena rigorosa da censura? O motivo é mais mundano do que se imagina.

Dois Camões
“Não há um Camões sem dois”, escreveu Saramago certa vez. E o ganhador do Nobel não poderia estar mais certo. Na história, não há um Camões sem dois: um Camões histórico, de carne e osso, e outro “literário” — de pompas, lendas e armadura. No ano em que se completam 450 anos do renascimento da língua portuguesa — a publicação d’Os lusíadas – fui abatido com uma verdade que era, para mim, incontestável: Camões não foi um herói. Ao menos, não em seu tempo.
Camões é uma unanimidade — é impossível falar de literatura em português sem passar por um verso seu. Mas a verdade sobre o poeta pode ser decepcionante. “Nasceu pobre, viveu pobre e morreu mais pobre ainda”, disse Eugénio de Andrade em um texto que poderia valer por uma biografia sua.
Não há em toda literatura em português personagem mais fascinante que Camões. Além das recorrentes delinquências de sua juventude e dos desconcertos de sua vida amorosa, Camões tinha muitos outros problemas a enfrentar. O que pouca gente sabe é que, à época, sua magna opus quase não foi publicada por um problema sagrado: a Inquisição!
Graças a Deus (ou aos homens), a obra desse gênio não foi queimada nos autos-de-fé ou sequer caiu nos index de seu tempo, podendo seguir sua existência profana. Mas por que, em meio a tantas outras obras, Os Lusíadas de Camões, um fidalgo decaído e sem muitos amigos importantes, foi salva da censura? O motivo pode ser muito menos sacro do que esperamos.
Quando homens (e livros) ardiam na fogueira
Muito antes dos portugueses singrarem “por mares nunca de antes navegados”, as fogueiras contra heresias já ardiam em Lisboa. Mas foi apenas mais de um século depois do início das grandes navegações, evento que iniciava a conquista do mundo, que os portugueses tiveram autorização para criar a sua Inquisição.
O Tribunal do Santo Ofício foi um órgão eclesiástico criado pela igreja católica para investigar e punir condutas heréticas aos fins da Idade Média. Os processos inquisitórios já aconteciam há muito tempo pela Europa quando finalmente aterrissaram em Portugal, em 1536.
No início, era usada para punir aversões à Igreja oficial e perseguir judeus sefarditas e cristãos-novos (aqueles recém convertidos ao cristianismo). Mas não tardou para as chamas serem acesas por outros motivos, mais mundanos que sagrados: (des)razões, muitas vezes, políticas. O auto-de-fé era, no fundo, um grande espetáculo simulado de justiça.
Naturalmente, não apenas os judeus e cristãos-novos eram perseguidos na Inquisição, mas também muito “cristãos-velhos”. Contudo, entre os de origem hebraica, a punição era mais severa. Um desses muitos mártires virou personagem do escritor Camilo Castelo Branco, em “O Judeu”. O poeta António José da Silva, nascido no Brasil e conhecido como “o Judeu”, ardeu em um teatral auto-de-fé em Lisboa, por exemplo. Ao todo, cerca de 40 mil pessoas foram processadas pela santa Inquisição em Portugal e 1.800 queimadas.
O último país a abolir a Inquisição
Se as fogueiras da Inquisição ardiam nesse tempo, ao longe também brilhava uma luz de razão. As perseguições religiosas começariam a ser questionadas ainda nesses tempos. Na Carta acerca da tolerância, John Locke defenderia que não era a variedade de crenças que causava a discórdia entre os homens, mas a intolerância às crenças.
“Não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de tolerância para com os que têm opinião diversa, o que se poderia admitir, que deu origem à maioria das disputas e guerras que se têm manifestado no mundo cristão por causa da religião.”
Apesar da contestação ainda perene, em Portugal, a Inquisição não seria extinta antes de 1821, um ano após a Revolução Liberal do Porto — a “revolução francesa” dos portugueses com 30 anos de atraso. O historiador Laurentino Gomes explicou, em 1808, que:
“Portugal foi o último país europeu a abolir os autos da Inquisição, nos quais pessoas que ousassem criticar ou se opor à doutrina da Igreja, incluindo infiéis, hereges, judeus, mouros, protestantes e mulheres suspeitas de feitiçaria, eram julgadas e condenadas à morte na fogueira. Até 1761, menos de meio século antes da transferência da corte para o Brasil, ainda havia execuções públicas desse tipo em Lisboa, que atraíam milhares de devotos e curiosos.”
Se eram os judeus, cristãos-novos e infiéis os maiores perseguidos, por qual motivo, então, Luís Vaz de Camões, que era um “cristão-velho” e muito temente a Deus, foi um desses muitos processados e colocado na cadeira do tribunal do Santo Ofício?
Camões, um herege?
Talvez para nós, hoje, não seja claro entender a heresia de Camões. Mas, voltando ao seu tempo, os motivos ficam mais que claros. Uma obra da erudição ímpar em história, geografia e literatura, Os Lusíadas não poderia passar pela Inquisição sem atentar os olhos. Eram 8.816 versos em dez cantos que uniam o sagrado, o profano, história e o íntimo do poeta com fluência única. Um livro hoje como Percy Jackson, apesar de mais simples, muito provavelmente seria censurado antes mesmo da publicação — pelos mesmos motivos d’Os Lusíadas.
Camões era um produto de seu tempo. A humanidade estava no auge da renascença e do humanismo. O homem começava a olhar para si (como centro do mundo, o antropocentrismo) e para o passado (a estética e a tradição greco-romana). Na poesia, o dolce stil nuovo viria substituir a antiga lírica trovadoresca — e iria se tornar a principal manifestação formal camoniana. Eram tempos em que se trocava D. Dinis por Petrarca.
O sagrado e o profano
Mas não é só na forma que houve uma revolução humanista: o conteúdo da produção literária virou de ponta cabeça. Muitas obras desse tempo começaram a misturar a religião oficial dos reis com mitos antigos do passado. Se, na prosa, deu-se luz a um Cervantes, a poesia não estava menos representada. Boccaccio, Dante e Petrarca reviveram a poesia em tempos diferentes, juntando a doce heresia ao sacro.
Para quem prestou atenção nas aulas de português, sabe que com Camões não foi diferente. Misturando os planos histórico e mitológico, o poeta português traçou a linha tênue que separa até hoje os feitos épicos dos portugueses e as lendas que amaldiçoavam os marujos no mar infinito. Na epopeia que rememora os feitos passados de Portugal, divindades greco-romanas se colocam no caminho dos “lusíadas” e a glória eterna.
O sincretismo de gregos e cristãos começa logo no primeiro canto d’Os Lusíadas. De início, Camões pede inspiração às ninfas (Tágides), fadas nas lendas gregas, que habitam o Mondego para narrar essa história:
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Porque de vossas águas, Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.
Ao longo da epopeia, somos apresentados a outras divindades que se colocam contra ou a favor da viagem dos portugueses, como Apolo, Baco, Diana e até Hércules. Outras referências são trazidas, como o gigante Adamastor, habitando o cabo da boa esperança, e a Ilha dos Amores — onde os heróis portugueses se deliciaram em prazeres carnais com as Nereides, um presente de Vênus por sua bravura.
Sobre a passagem em que o gigante Adamastor tenta frustrar a viagem dos portugueses, narra o poeta:
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Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
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E disse: “Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar nos longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d’estranho ou próprio lenho:
[…]
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Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas!
E da primeira armada, que passagem
Fizer por estas ondas insufridas,
Eu farei d’improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo!
A essa aventura fantástica dos portugueses, Camões misturou um mundo híbrido, com o Deus católico vivendo no mesmo plano dos deuses gentios e elevou os prazeres libidinosos do homem. Já seriam motivos suficientes para condenar a maior obra épica portuguesa ao esquecimento. Todas essas heresias o poeta teve que defender verso a verso na cadeira da Inquisição.
Mas, com o parecer final do Frei Bartolomeu Ferreira, um veredito inesperado:
“Vi por mandado da santa e geral inquisição estes dez Cantos dos Lusíadas de Luís de Camões, dos valorosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa, e não achei neles cousa alguma escandalosa nem contrária à fé e bons costumes, somente me pareceu que era necessário advertir os Leitores que o Autor pera encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de uma ficção dos Deuses dos Gentios. […] Todavia como isto é Poesia e fingimento, e o Autor como poeta, não pretende mais que ornar o estilo Poético não tivemos por inconveniente ir esta fabula dos Deuses na obra, conhecendo-a por tal, e ficando sempre salva a verdade de nossa santa fé, que todos os Deuses dos Gentios são Demônios. E por isso me pareceu o livro digno de se imprimir, e o Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas.”
O que aconteceu para que Os Lusíadas escapasse à pena rigorosa da censura? Muitos podem acreditar que se trate da grandiosidade finalmente reconhecida de Camões e seu legado à língua portuguesa. Mas, na verdade, o motivo é menos épico e muito mais mundano do que se possa imaginar.
O fim em Alcácer-Quibir
A provável resposta para a não censura d’Os Lusíadas está na primeira página do livro desde a primeira edição: um personagem que se tornaria um símbolo para a história de Portugal, o rei Dom Sebastião.
Após um longo tempo em exílio, Camões retorna a uma Lisboa muito diferente que deixara após 17 anos de degredo no Oriente. Sob a Coroa Portuguesa, o monarca D. Sebastião, que assumira o trono aos 14 anos, era o último descendente homem vivo da dinastia de Avis. Para piorar a crise monárquica, o rei jovem e insensato decidira dispensar os antigos conselheiros e fizera um voto de castidade. As más notícias já serviam de prelúdio: a dinastia terminaria consigo. A batalha de Alcácer-Quibir confirmaria o fim dos Avis.
Camões conhecia os extremos orientes do império português e antevia sua ruína. A obra só seria terminada em Portugal, com a dedicatória ao rei. Mas o motivo dessa dedicatória não era apenas a devoção de um súdito que retornara dos limites do Império: era uma mensagem política.
O rei dispensara os antigos ministros do país e cercara-se de jovens fidalgos. Os irmãos Martim Gonçalves e Simão Gonçalves da Câmara tinham influência enorme sobre o jovem monarca, fazendo-o governar de forma despótica. Do outro lado da balança, o Cardeal D. Henrique, tio-avô de D. Sebastião, opunha-se à presença deles nos conselhos da Corte — não por acaso, ele também era o Inquisidor Geral do Reino.
Em versos, Camões aconselhava ao jovem rei a ouvir somente aos conselheiros “exprimentados”, que tivessem aprendido pela experiência.
Fazei, Senhor, que nunca os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
Possam dizer que são pera mandados,
Mais que pera mandar, os Portugueses.
Tomai conselho só d’exprimentados
Que viram largos anos, largos meses,
Que, posto que em cientes muito cabe.
Mais em particular o experto sabe.
Não se pode dizer com certeza que a influência política foi o que salvou a obra de Camões da Censura — ou mesmo que ela continuava intacta após passar pela pena do Santo Ofício. Mas é de se estranhar que uma obra deste tempo, trazendo deuses estranhos e uma sensualidade explícita, fosse liberada pelos tribunais eclesiásticos.
Quanto ao monarca displicente, os avisos do poeta não pareceram surtir efeito. Poucos anos depois da audiência de leitura a D. Sebastião, o mesmo se daria em uma batalha contra os mouros em Alcácer-Quibir. Após perecer e desaparecer nesta luta, seria o início de uma longa crise no estado português que levaria à União Ibérica.
Curiosamente, em Portugal e no Brasil, ainda hoje há quem espere o renascimento de D. Sebastião e dos 12 Pares de França, que hão de restaurar o Império e a grandiosidade portuguesa. Essa foi uma das profecias de Antônio Conselheiro em Canudos, mais de séculos depois da morte do rei santo.
O legado de Camões
Não há um Camões sem dois. De um lado, o Camões histórico, que nasceu pobre, viveu pobre e morreu mais pobre ainda. De outro, o Camões simbólico, que deixaria a nós o maior legado imaterial da história: a língua portuguesa.
Se o poeta teve curto sucesso em vida, a sua fama seria reconhecida ao menos postumamente. A influência de Camões em Cervantes talvez não seja conhecida, mas é primordial para entender a prosa do maior autor espanhol. No Estado Novo, eufemismo para a ditadura liderada por Salazar, Camões seria usado novamente para fins políticos.
Em vida, o poeta teve uma vida confusa, marcada pela oposição perene do sagrado e do profano. Uma rara erudição das ciências humanas e da lírica de seu tempo. O descaso com a genialidade de Camões talvez tenha sido injusto, ou apenas fruto do ego arrogante de quem se sabia genial.
A Inquisição, mais uma, talvez graças a Deus (ou aos homens) preservou esta obra aos nossos dias. No fim, apesar da vida cheia de aventuras e do legado que deixara ao mundo, Camões lamentava suas falhas e pecados deixados para trás. Afinal, parecia que só para ele o mundo andava “concertado” e punitivo.
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.
Referências
BRANCO, Camilo Castelo. O judeu.
DE ALMEIDA CINI, Celso. O Amor de Camões e Catarina de Ataíde e a História Bíblica de Jacó e Raquel. Disponível em: <https://algrasp.com.br/2019/02/26/o-amor-de-camoes-e-catarina-de-ataide-e-a-historia-biblica-de-jaco-e-raquel/>. Acesso em: 10 Feb. 2022.
DE ALMEIDA PEREIRA, Kenia Maria. Moacyr Scliar Vê O Santo Ofício: Reflexões Sobre a Crônica “a Inquisição.” Congresso Internacional 2018 – Associação brasileira de Literatura Comparada
DE CAMÕES, Luís. Os Lusiadas. 1957.
DE CAMÕES, Luís; DE ANDRADE, Eugénio. Versos e alguma prosa de Luís de Camões., 1972.
ESPERANÇA, Carlos. Há 479 anos – o primeiro auto de fé da inquisição portuguesa. Disponível em: <https://ponteeuropa.blogspot.com/2019/09/ha-479-anos-o-primeiro-auto-de-fe-da.html>. Acesso em: 10 Feb. 2022.
FERREIRA, Leonídio Paulo. “Admiração de Cervantes por Camões não era só literária. Ambos eram homens de ação.” Diário de Notícias, 2016. Disponível em: <https://www.dn.pt/artes/admiracao-de-cervantes-por-camoes-nao-era-so-literaria-ambos-eram-homens-de-acao-5063210.html>. Acesso em: 10 Feb. 2022.
FILMES, évora. Os Lusíadas. Série Grandes Livros (RTP 2009). Disponível em: <https://youtu.be/5wcMg0bgioI>. Acesso em: 10 Feb. 2022.
GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil., 2015.
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância: Segundo tratado sobre o governo ; Ensaio acerca do entendimento humano. 1978.
SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote.: Editora Companhia das Letras, 2014.
Créditos Homo Literatus
Esse texto foi escrito por Eduardo Reitz. A revisão é de Raphael Alves e a edição final de Nicole Ayres, editora-assistente do Homo Literatus.