O surrealismo imagético de Kafka pelas mãos do ilustrador Peter Kuper no livro Desista! E outras histórias de Franz Kafka
Uma barata gigante. Provavelmente foi esta a “imagem kafkiana” que lhe ocorreu.
É indiscutível que era imensa a habilidade de Kafka em regar de imagens abstratas surrealistas suas narrativas perturbadoras. Por isso, parece-me ainda mais assustador tentar imaginar que tipo de imagens se passavam em sua mente que não se concretizaram em palavras assombrosas. Infelizmente, o mais assustador é provavelmente um dos mais importantes de seus mecanismos de composição.
A escrita de Kafka vai muito além de narrativas baseadas em imagens oníricas, e da criação do estranhamento e do choque. São inúmeros os textos que expõe e reviram suas dimensões sociais, políticas, psicológicas, humanas e tantas outras. A dificuldade é dimensionar justamente o mecanismo que o autor utiliza para tornar tudo isso tão universal: o surrealismo imagético. Presentes desde suas narrativas mais curtas, suas imagens oníricas poderiam ter sido concebidas por basicamente qualquer indivíduo, de qualquer sociedade, em qualquer tempo. Mas foi em 1995 que Peter Kuper, famoso cartunista norte-americano, tomou liberdades ilustrativas frente aos horrores kafkianos no livro Desista! E outras histórias de Franz Kafka.
Kuper escolheu e enfrentou nove brevíssimas narrativas do autor tcheco, trazendo traço ao que só existia em palavra. Sobre as narrativas selecionados por Kuper é importante ressaltar que, além de breves, são histórias de imagens simples, por assim dizer; absurdos muito mais próximos de O Processo, no qual a construção geral da narrativa é onde está o absurdo, não nos fatos isolados. Curioso observar que até em narrativas tão curtas, com imagens tão “imagináveis” e até cotidianas, Kafka impregnou seu ar surrealista que não nos permite passar ilesos. Mesmo ar que impulsionou Kuper a combinar a criação verbal do tcheco com a sua imagética, em composições ilustradas que potencializam o ar fantástico e onírico das narrativas.
Uma sensação de silêncio oco permeia toda a edição do norte-americano. Um exemplo ideal de como imagem e narrativa podem completar mutuamente suas lacunas, estabelecendo uma unidade sem ruídos. Entrar na obra de Kuper é como entrar na obra de Kafka pelo espelho de Alice: uma imersão em um sonho de papel das histórias surrealistas do tcheco, no qual texto e imagem trabalham alternadamente em polos opostos de concretude real e imaterialidade surrealista. O clima de Kafka é denso ao longo da obra, inebriante ao máximo no curto espaço narrativo em que acontece.
“Desista!”, provavelmente a mais banal das histórias desta obra, é imersa por Kuper em ilustrações de uma cidade completamente onírica, com gigantescas letras pairando no céu, olhos substituídos por relógios, pista que se cruzam com prédios e um gigantesco policial com um cano de arma no lugar do nariz. O pouco de estranhamento criado por Kafka, aqui representado textualmente apenas pela reação explosiva do policial, potencializado pelas imagens de Kuper.
Já em “A Ponte” a dinâmica entre texto e imagem se inverte. A voz é de um personagem agoniando seu fardo de ser uma ponte humana em um lugar intransitável, até que um inesperado transeunte coloca fim a seu inútil propósito. As ilustrações de Kuper são o que se pode chamar de “redundantes”: mostram as cenas que as palavras contam. É aí que está a força do conjunto: o tratamento banal por parte do ilustrador de fato tão absurdo, narrado também sem qualquer alarde.
Essa dinâmica entre Kuper e Kafka, um jogo de compensações entre imagem e texto na retratação do absurdo, é o que mantem o estável e quase palpável clima onírico em Desista! E outras histórias de Franz Kafka. Quando a narrativa da conta de descrever a transpor os surrealismos kafkianos, as ilustrações de Kuper trabalham apenas como palco das imagens; quando Kafka trabalha na sutileza ou no detalhe, o norte-americano garante um espetáculo imagético de surrealismos.
Obviamente as concretizações de Kuper não são as únicas interpretações possíveis, para estas ou quaisquer outras histórias de Kafka. A verdade é que não há interpretações fechadas, nem mesmo corretas ou erradas. O que o trabalho do cartunista prova, em grande estilo, é que Kafka não é surrealista apenas quando faz isso descaradamente, mas o é também nos pequenos detalhes; e que Kafka não é apenas surrealista apenas em suas palavras, mas em seus gestos de escrita.