Às vezes, tenho visões.
Dia desses me vi com os cabelos brancos, sentado em uma varanda, com uma pilha de livros ao meu lado esquerdo, no chão. Eu me abaixava e os pegava. Não conseguia mais ler. A loucura fazia com que eu arrancasse algumas páginas. Seguia minha relação com os livros, mesmo após ter me desligado da realidade.
Não é algo impossível em uma família com histórico de loucura. Muito antes de eu nascer, minha bisavó foi abandonado num asilo, louca. Fugiu de lá e foi atropelada por sua confusão, morta por um carro. Um dos caçulas entre meus tios tinha medo da polícia, pedalava quilômetros para ir admirar aviões pousando ou aterrissando e fingia os trejeitos do pai há muito morto, mesmo às vezes o amaldiçoando. Já morreu. Outro irmão dele, este ainda vivo, costuma se esconder das pessoas, fica dias sem tomar banho, veste as roupas ao contrário e gira as mãos em movimentos estranhos. Parece não ligar muito para a realidade. Entretido em resolver algum outro problema que me escapa.
Lembrei de tudo isso nesta semana por dois motivos.
Minha mãe exibiu alguns comportamentos estranhos. Queremos acreditar que se deve a alguma reação dos medicamentos. Mas o médico ainda estuda possibilidades.
O segundo motivo foi a leitura do romance Arco de virar céu, de Antonio Cesaro (Tordesilhas, 2016). A história é narrada por um pesquisador em antropologia, que estuda sociedades indígenas da época da descoberta do Brasil, mas também lida com o irmão, descoberto com problemas mentais ainda na infância, após receber um jogo de tabuleiro militar. A partir daí, este irmão passou a compreender sua vida como se vivesse em uma batalha, citando sempre frases do jargão militar. O conflito se intensifica quando o narrador passa a achar que as frases do louco têm algo a ver com suas pesquisas indígenas, refletem as sociedades canibais. Não vou revelar o que acontece deste ponto em diante, pois seria furtar parte do prazer do leitor, mas ficamos com aquela sensação incômoda de identificação. É uma leitura rápida, fluída – principalmente após passarmos o primeiro capítulo, um tanto sorumbático em sua prosa poética –, na qual nos deparamos com o que alguém afirmou ser o tema central de toda a literatura. A loucura.
(Mas não é sobre amor, Vilto? Quantos amores não viraram loucura?)
De Dom Quixote a Madame Bovary, de Macbeth a Dom Casmurro, as obsessões que levam à loucura. Das formas mais diferentes. Não seria a literatura um reflexo do que nós somos? Nelson Rodrigues disse que “de perto ninguém é normal”.
Na pior das hipóteses, todos nós construímos ficções para tornar a vida suportável. Seja mentindo para nós mesmos, seja nos forçando a acreditar em coisas que lá no fundo sabemos que não existem, apenas por conformismo social.
Só uma coisa me consola. A literatura sempre nos salvará disso tudo. Talvez não da loucura.