Quando vivi um trecho de um conto do Borges

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“Os Outros o lerão como um conto”

Borges: Você viveu um conto meu?
Borges: Você viveu um conto meu?

O Outro é um dos meus contos favoritos do Jorge Luís Borges. Nas linhas iniciais, o narrador diz: “Não o escrevi imediatamente, porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrevo, os outros o lerão como um conto e, com os anos, o será talvez para mim”, ao se referir a um fato ocorrido em 1969. Quando li pela primeira vez isso me pareceu uma confissão, e antes que terminasse, me perguntei o que tinha acontecido de tão desimportante ao protagonista.

Reli o conto algumas vezes e interpretei um encontro além do real. É só um banco de praça qualquer em um dia esquecível, até perceber que a pessoa na sua frente é você com pelo menos meio século de vida a mais. Não em sentido de piada, como se um amigo olhasse alguém na rua e dissesse “ó você aos 50”. Literalmente a sua versão do futuro se põe a tua frente, confirmada pelos conhecimentos e hábitos comuns. Mais surreal ainda é admitir que você vai se tornar a sua versão mais velha, ela não veio te alertar de perigo algum ou mudar essa bagunça chamada destino, apenas veio. E você que se vire querendo (falhando) entender o sentido disso. Esse é o conto do Borges na minha cabeça, e ter lido sobre quão frequente a temática do “duplo” é na obra do nosso argentino escolado não mudou O Outro na minha releitura, principalmente porque já vivenciei parte dele.

Não sonhei ter sido visitado pelo meu eu futuro, para o bem dele. Tampouco sonhei ter presenciado alguém próximo encontrar sua versão envelhecida, nada disso, foi real até demais. Meses atrás encontrei uma amiga em uma festa. Adianto que estávamos sóbrios e eu não tinha segundas nem quintas intenções com a moça, só papo furado. Depois da conversa nos despedimos e pedi a ela que me avisasse quando chegasse em casa. Cuidado besta, eu sei. Ela aceitou numa boa, não estranhou o excesso.

Meses após este fato vivi algo parecido em outra festa. Fiquei de papo com uma menina, de novo ambos sóbrios e apenas de papo, e na saída ela me pediu para dizer quando eu chegasse em casa. Aceitei e, uma vez em minha toca, enviei uma besteira qualquer, tudo bem. Mesma situação que a do parágrafo anterior, só mudou quem pediu o aviso, natural em ambas noites. Ao mesmo tempo em que demonstra cuidado com alguém, mesmo soando algo pequeno e besta, se a minha versão do futuro parasse na minha frente e me contasse que eu viveria tais fatos eu não acreditaria.

São passagens críveis em meio ao tanto que podemos duvidar, e ouvindo ninguém imaginaria que pode recriar esta narrativa na vida, colocando a si e a outra (outro) como personagens de carne e osso. Nada surreal e, quando se percebe, está feito e, com sorte, escrito na memória. Se eu contasse isso para a minha versão do futuro ela me daria um sorriso, ciente desta página que ajudou a redigir, e na minha imaginação o Outro, versão envelhecida do narrador do conto do Borges, também rabiscaria um sorriso na própria face ao notar que o protagonista percebeu que o Outro está bem próximo.

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