A tetralogia da incógnita Elena Ferrante aborda conflitos geográficos, culturais e principalmente pessoais
Houve um tempo na minha vida, em 2004, ao qual eu me refiro como “a vez que ganhei na loteria”. Eu morava na província de Nápoles, em Sorrento. Trabalhava para uma família dona de um hotel onde o mar Mediterrâneo engole o ar da gente mesmo na repetição do cenário. O Vesúvio ao fundo, majestoso, poderoso, ameaçador, comprova as dificuldades daquele sul italiano. Aldeias e cidades inteiras se formaram na beira do vulcão. Será que se esqueceram de Pompéia, de Herculano?
Dentro dessa minha vida italiana, que durou alguns ventos sirocco, ouvi pela primeira vez o dialeto napolitano. Pareceu-me uma mistura do português, italiano, francês e espanhol. Segundo estudiosos, leva características de considerável pureza do latim.
No colorido do meu cotidiano, meu ouvido revezava entre napolitano e italiano. O hotel se dividia em micronúcleos. Os donos e seus parentes, proprietários de café, lanchonete e sorveteria tinham predileção por comunicar-se em italiano. A empregada da casa, as camareiras, os chefs, os garçons gritavam com emoção o dialeto, pressupondo que a minha compreensão fosse certa. Na minha memória afetiva guardo dois personagens: Signora Laura, a camareira e Gigino, administrador da praia do hotel. Os dois não sabiam se expressar com a mesma comoção em italiano. Tinham em comum além do dialeto, o hábito de falar muito, falar deles, falar dos outros, falar, falar. Falavam sozinhos na maioria do tempo. As advertências da Signora Laura pra mim eram sobre os rapazes. Eles virão nas suas lambretas, vão falar com você. Não perca tempo com esses homens. Diga logo “che sfaccimm vuò” e não sobra um por perto.
Quando Oscar Wilde disse que a juventude é desperdiçada no jovem, talvez se referisse a esse meu passado recente na Itália. À luz da distância e da reflexão, enxergo um dos pontos mais desconfortáveis na cultura italiana: o sul x o norte, o dialeto x o italiano, as classes.
E foi exatamente esse o tema mais marcante no romance de Elena Ferrante A história de um novo nome, com publicação no Brasil prestes a sair. O livro dois da coleção de quatro volumes das histórias napolitanas, começa com a festa de casamento de Lila. A narrativa é um triunfo, particularmente neste volume. Lenú hesita, se fere, se emociona com uma intensidade perturbadora que não enfraquece ao longo das 471 páginas. O crescimento de Lenú é muito doloroso e acontece com calma diante dos nossos olhos, na mesma combinação vista em A amiga genial, de amor e cuidado, rancor e ódio entre ela e Lila. A amizade das duas continua sendo a estrutura, o esqueleto do romance. Mas, agora, é mais nítida a crítica ao fracasso, consequente da repetição de papéis e incrível violência dentro da vizinhança ondem moram as protagonistas. A máfia, a Camorra, começa a brotar, discretamente, como paisagem.
Feito um rio em curso, as histórias de Lila e Lenú começam a seguir paralelamente em águas agitadas, mas muito distintas. A obra de Ferrante tem como um dos maiores méritos a concomitante importância de duas amigas que acabam por seguir destinos praticamente opostos. Aparentemente, a glória de uma vê o declínio, o desmoronamento da outra. Mas a complexidade de Lila vem com suas imprevisibilidades. Diante da recusa de uma vida considerada por qualquer um na sua vizinhança, como melhor, a jovem demonstra a força que a define desde o primeiro livro. Sua resiliência beira o absurdo. De certo seria impensável para Lenú viver dentro das escolhas que Lila faz, já no final do livro.
Enquanto Lila aparentemente desmorona, Lenú começa a se firmar como o exemplo do que recusa o destino, rejeita o hábito à violência física e à agressão psicológica que se impõem naturalmente nas casas da sua infância e adolescência. É nesse ponto de amadurecimento de Lenú que encontramos o ponto mais importante dessa história. Se eu, bobamente, fosse adivinhar o que queria Ferrante com esse livro, eu arriscaria que o debate sobre as classes e, como consequência, a geografia italianas seria forte candidato a tema central.
Não é por acaso, não acredito, que Lenú consegue uma vaga numa universidade em Pisa, no centro da região Toscana, que é frequentemente creditada como o berço do italiano culto, perfeito. A aparente desintoxicação do dialeto e das ruas sujas e violentas, onde cresceu em Nápoles, continua quando Lenú encontra Airota, o companheiro cuja origem genovesa traz mais uma vez o desejo de distanciamento da narradora em relação ao sul.
Lila e Lenú também se polarizam em relação à camada social. Enquanto Lila vive a urgência da sobrevivência, Lenú, ainda que entediada, cobrando de si mesma os eventos e a coragem que sobram na amiga, segue em determinação com seus estudos, a chave da sua eventual glória que fecha o livro com seu maior feito (escondo aqui os detalhes para não tirar a surpresa na leitura).
Uma reviravolta, considerando que no final de A amiga genial e no início de A história de um novo nome é Lila quem assume uma importante escalada social e de status, na pele da nova Signora Carracci.
A partir daí vamos testemunhar a determinação e teimosia de uma jovem imatura, intensa e inteira. A exposição de Lila e a discrição de Lenú nos agitam e revoltam nossas associações. Não sabemos se somos uma ou outra. Ressentimos as duas, torcemos pelas duas, mesmo que em passagens, não seja necessário escolher entre uma e outra.
Esse segundo livro da tetralogia de Ferrante continua carregado de personagens feito o primeiro. Na minha leitura, essa escolha de numerosos personagens não é gratuita. São assim os bairros napolitanos. Há pouca privacidade. Há muita opinião, há muita gente. Não se lava roupa suja em casa. Lava-se na janela e pendura-se no varal que é dividido com o vizinho. Agora, no entanto, os jovens crescem, tomam as formas feias dos adultos, repetem a violência, os hábitos dos pais. Os homens passam a abusar das mulheres. As mulheres passam a odiar os homens. Vivem assim, em pares pra sempre, naquela dinâmica de classe social que não se quebra e se repete com as gerações seguintes.
A história de um novo nome talvez seja a história de Raffaella Carracci ou Lina Cerullo. Talvez seja o reconhecimento de Elena Greco, a narradora. A decadência de Raffaella e, pelo que sinaliza a narrativa, a permanência e o destaque de Elena.
Nesse emaranhado de forte agressão, abuso, intromissão e emoção, permanece a amizade das duas moças que, inacreditavelmente, parece se manter em firmes pilares.
Ferrante tem lá suas obsessões. Recorrentes nas suas narrativas, a força do dialeto como recurso último para se fazer entender diante da falta da dignidade. Isso acontece no seu exuberante romance Dias de Abandono, quando a protagonista napolitana e moradora do norte da Itália, frustrada e humilhada pelo fracasso do seu casamento, recorre à parolaccia do seu dialeto para lidar com sua raiva e seu abandono. Nessa mesma obra, a figura da mulher abandonada pelo homem, a “poverella”, volta na tetralogia através da louca Melina que lava as escadarias do seu prédio numa agitação doentia. Mas não só: Lenú vê o abandono que se repete dentro da miséria da condição das suas vizinhas, da sua gente, quando reflete pela primeira vez, sobre a pouca idade das mães dos seus amigos, poucos anos mais velhas que a própria narradora. Talvez quinze, vinte e já portam o semblante da morte, da desistência, do costume.
Longe de toda essa sombra carregada pela luta de classes na província de Nápoles narrada nos anos sessenta, minha vida ensolarada e sorrentina em 2004. A importância que os meus patrões deram quando anunciei que tinha um namorado romano. O mesmo rapaz que, ao me visitar no sul, riu de toda aquela brava e buona gente que fala em dialeto e me chama de Naruccia.
Perto da amizade napolitana, a sofisticação de Roma me pareceu, enfim, inútil.