Rafael Mendes resenha seu conto predileto: “Catedral”, de Raymond Carver

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Foto-Rafael-PB

Catedral é o meu conto predileto porque era também um dos contos prediletos de Raymond Carver, autor do conto. Foi esse autor, e esse conto, que me fizeram descobrir, enxergar, o que é de fato a arte de uma narrativa curta.

Gosto de Carver porque, além de ter sido um dos expoentes do Realismo Sujo e tido como um dos maiores contistas de todos os tempos, ele era também um sujeito comum, que teve diversos subempregos para prover a família e que lutava contra seus vícios. Eu não tenho o reconhecimento e muito menos o talento de Carver, mas me identifico com ele porque também sou um escritor cheio de contas para pagar. Em alguns aspectos, somos parecidos.

Os contos de Carver retratam sobretudo a vida comezinha da classe média estadunidense, as mazelas e as frustrações das famílias suburbanas, o cotidiano dos trabalhadores e das donas de casa.

Catedral conta a história de um homem que certa noite recebe a visita de um amigo de sua esposa. Esse amigo é cego, e o anfitrião, que não o conhece, sente dificuldades em interagir com alguém que não consegue enxergá-lo.

“Um cego na minha casa não era uma coisa que eu pudesse aguardar com grande expectativa.”

Os três jantam, bebem uísque, conversam. A mulher, embriagada, resolve ir dormir. O anfitrião e o cego continuam conversando na sala, bebendo, fumando maconha e assistindo televisão, um programa sobre catedrais da Europa. O cego quer saber como é uma catedral, e o anfitrião tenta explicar como são as paredes, os vitrais, os interiores.

É então que a arte de Carver se revela. Com maestria, o autor inverte os papéis dos personagens e nos mostra que quem não enxerga e não compreende as coisas da vida na verdade é o anfitrião, e não o cego. Mas diz isso sem ser piegas, sem demagogia. É preciso que o leitor, o bom leitor, também abra os olhos para entender, para enxergar as entrelinhas.

Catedral foi publicado em 1983, em um livro homônimo. Nessa época, Raymond Carver estava mais estabelecido financeiramente, tinha um bom reconhecimento da crítica e conseguira se livrar do vício do álcool. O tabagismo, contudo, ele levou consigo por mais um tempo, até ser diagnosticado com câncer de pulmão, em 1987, e falecer no ano seguinte.

 

Trecho do conto ‘Catedral’, de Raymond Carver

“Mas eu estava de olhos fechados. Fiquei com vontade de manter os olhos fechados por mais tempo. Achei que era uma coisa que eu devia fazer.
‘E então?’, perguntou ele. ‘Está vendo?’
Meus olhos ainda estavam fechados. Eu estava em minha casa. Sabia disso. Mas não tinha a sensação de estar dentro de nada.
‘É mesmo incrível’, falei”.

 

Trecho do conto ‘Meu amigo Paulo Roberto’, de Rafael Mendes

“Já lhe contei sobre a primeira vez que a minha mãe achou uma paranga nas minhas coisas?’, eu perguntei, para quebrar o clima. O Paulo Roberto fez que sim com a cabeça e ficou admirando a paisagem. ‘Mas eu vou lhe contar de novo porque essa história é bacana’, eu disse. Aí eu contei como esqueci a maconha no bolso da calça suja, como a minha mãe chorou, como foi o sermão do meu pai, a promessa que eu fiz, a dó que me deu ao jogar o pacote na privada, cheinho. Quando terminei de falar, já estava escurecendo. ‘Agora você vê como as luzes da cidade são bonitas, vistas aqui desta laje’, eu falei. ‘Estou vendo’, disse meu amigo Paulo Roberto, ‘estou vendo”.

 

Rafael Mendes nasceu em São Paulo, onde vive com a esposa e os filhos. É autor do volume de contos A melhor maneira de comprar sapato (2012), e do recém-lançado romance Fôlego (2014), ambos publicados pela editora Confraria do Vento.

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