Diálogos, tiros, crimes e uma aula de como escrever a narrativa criando imagens na mente do leitor – é o que encontramos em Raylan, de Elmore Leonard
Digamos que você analise a Odisseia, de Homero. No épico, há quase que exclusivamente diálogos. Nada de grandes blocos de texto, tentando uma pretensa profundidade psicológica dos personagens. O que há ali é humanidade. Contudo, quando você lê a obra, consegue formar em sua cabeça as cenas.
Neste sentido, o romance Raylan, de Elmore Leonard, tem uma dinâmica de funcionamento semelhante. Não, nada de versos ou um personagem que está voltando para casa – tal qual Ulisses. A comparação funciona no sentido da forma como o texto flui. Narrações rápidas que servem de introdução a diálogos dinâmicos, agudos e cheios de ironia – lembra até uma mistura de Sam Spade (detetive de Dashiell Hammett), influência de Hemingway e um jeitão do Rubem Fonseca de escrever diálogos e um cenário mais interiorano, em certo sentido como o da série True Detective (embora o condado de Harlan County, no Kentuck, do livro de Elmore Leonard fique bem distante do estado da Louisiana da série da HBO.
Na trama, temos o delegado Raylan (o mesmo da série Justified) que começa com um mandado federal para pegar Angel Arenas, um traficante de maconha. Pronto a encurralá-lo em um motel, ele rejeita a ajuda de outros agentes para derrubar a porta, preferindo simplesmente passar na recepção e pegar a chave. Contudo, no quarto encontra seu procurado dentro de uma banheira cheia de água. Ainda tem pulso, mas está morrendo de frio. Na barriga, há dois furos tampados com grampos. A parceira de Raylan, Rachel, diz que há tanto sangue em cima da cama que parecem ter matado uma galinha. E ao ver Angel na piscina, acrescenta que os furos são iguais aos de uma cirurgia feita em sua mãe. Raylan quer saber que tipo de cirurgia. Ela responde que de retirada de um rim. Ele então começa a lidar com um novo tipo de crime, um tipo de golpe. Os sujeitos retiram o rim da pessoa e quando ela vai para o hospital, enviam um fax vendendo de volta o órgão – por cem mil dólares. Raylan descobre quem são os dois que aplicaram o golpe depois de conversar com Angel Arenas na UTI, mas sua investigação não se move em direção deles. Sabe que são tão idiotas que não poderiam fazer uma cirurgia daquelas. Ele vai atrás de descobrir quem é médico que está atuando com eles.
A partir daí, a trama progride em inúmeros pontos de viradas, amarrando cada vez mais o leitor à história.
A arte minimalista da narrativa
Retomo a abordagem do começo do texto. Não é apenas um romance policial qualquer. O livro de Elmore Leonard esbanja uma técnica diferenciada de construir diálogos. Quantas vezes lemos obras em que os diálogos parecem artificiais? Por mais que se trate de literatura, procuramos certos elementos que fornecem verossimilhança à conversa. Mais do que isso, em Raylan vemos os diálogos funcionando como forma de caracterização dos personagens. Se o cara é um traficante, ele não chama sua arma de “revólver”, mas sim de “berro”, fazendo uso de uma gíria. Quando a menina-prodígio do pôquer, Jackie, corrige a advogada Carol dizendo que a arma do seu capanga é uma Glock, na verdade o faz apenas para se mostrar. São pequenos detalhes que compõem o quadro deste minimalismo narrativo.
Para encerrar, nada melhor do que deixar uma amostra dos diálogos do livro:
Raylan disse: “Então você não vai precisar de guarda-costas. Eu estava esperando por isso.”
“Pensei que você queria me vigiar”, disse Jack, “para eu não fugir de novo.”
Raylan disse: “Eu poderia nos algemar um ao outro.”
Ela estava olhando diretamente para ele. “E jogar a chave fora?”
“Nós vamos ter de nos separar de vez em quando”, disse Raylan, “para ir ao banheiro. Mas algemar-se um ao outro é um bom teste de compatibilidade.”
Ela disse: “Nós precisamos testar se nos damos bem?”
“Tem razão”, Raylan respondeu. “Diga-me o que você gostaria de fazer.”
Ela ficou olhando para ele.
“Ir curtir em algum lugar.”
Raylan levou um instante para vê-los no Two Keys Tavern, subindo para o seu quarto de monge no segundo andar. Disse: “Sabe que noite é hoje no lugar onde estou hospedado? Noite louca”. E perguntou: “Você gosta de bancar a louca?”.
Jackie disse: “Adoro bancar a louca.”