Uma análise, sem maiores pretensões, das teorias do personagem Raskólnikov do romance Crime e Castigo, de Dostoiévski. Apesar de tantas interpretações sobre elas, exigem do leitor praticamente tanta garra e tanta erudição quanto demonstra ter o próprio escritor, ou seja, exige um conhecimento amplo da história do pensamento filosófico.
Já que em um Portal da internet não permite nos aprofundar muito, então, pretendemos, sem maiores pretensões, analisar brevemente a razão na obra Crime e Castigo, de Dostoiévski, como a consolidação do controle ideológico e a crise da razão. Do que se trata isso? Veremos:
Quem foi o escritor Dostoiévski? Dostoiévski foi um escritor russo, considerado um dos maiores romancistas da literatura russa e um dos mais inovadores artistas de todos os tempos (BAKHTIN, 2008). É tido como o fundador do existencialismo, mais frequentemente por Notas do Subterrâneo ou Memórias do Subsolo, descrito por Walter Kaufmann como a “melhor proposta para existencialismo já escrita” (KAUFMANN, 1975, 12).
O filósofo Nietzsche referiu-se à Dostoiévski como o único psicólogo com que tem algo a aprender, ele pertence às inesperadas felicidades da vida de Nietzsche:
De Dostoiévski eu não sabia, até poucas semanas, nem sequer o nome – eu, um homem sem instrução, que não lê nenhum “jornal”! Uma visita casual a uma livraria me colocou diante dos olhos o livro L’esprit souterrain em uma tradução francesa (tão casual quanto me ocorreu aos 21 anos de idade com Schopenhauer e aos 35 com Stendhal!). O instinto de parentesco (ou como poderia eu chamá-lo?) falou de imediato, minha alegria foi extraordinária: eu devo retroceder até meu contato com O vermelho e o negro de Stendhal, para me recordar de semelhante alegria (NIETZSCHE, 1887, p. 27).
O último romance de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, foi considerado por Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, como o melhor romance já escrito (FREUD, 1997).
O filósofo Sartre também, dentre outros, discute questões vivenciadas pelos personagens de Dostoiévski e reconhece a influência desse escritor (NUTO, 2011).
É sabido ainda que a obra de Dostoiévski exerce uma grande influência na literatura moderna, legando a ela um estilo caótico, psicológico, desordenado e que apresenta uma realidade alucinada. Ainda várias escolas da teologia e psicologia foram influenciadas por suas ideias.
Dostoiévski influenciou imensamente vários escritores como: Marcel Proust, Albert Camus, Franz Kafka, Ernesto Sabato e Gabriel García Márquez, para citar alguns autores (SABATO, 1998).
Depois dessa pequena apresentação do já conhecido Dostoiévski, iremos, então, analisar brevemente a razão na obra Crime e Castigo. Logo no primeiro capítulo, o narrador começa por apresentar aquele que será o personagem principal do romance, o Ródion Ramanovich Raskolnikov, e esclarece as condições psicológicas e sociais em que ele se encontra:
Mas fazia algum tempo que vivia num estado irritadiço e tenso, parecido com hipocondria. Andava tão absorto e isolado de todos que temia qualquer tipo de encontro, não só com a senhoria. Estava esmagado pela pobreza, e até mesmo o aperto em que vivia deixara de oprimi-lo ultimamente. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 19).
Percebemos ainda uma alusão ao capitalismo e as suas mazelas, segundo Dostoiévski. Por exemplo, o jovem e pobre estudante Raskólnikov vai à residência da senhora Aliena Ivánovna, uma agiota que o explora ao máximo com juros de empréstimos altíssimos que parece ser impagáveis.
Essa senhora é rabugenta, ranzinza, sem espírito altruísta, sem compaixão e resmunga como reclamando de tudo, a todo o momento. Seria essa velha agiota uma representação do capitalismo selvagem nessa obra de Dostoiévski? Parece que sim, pois, ao decorrer da história, o jovem estudante conhece um senhor bêbado numa taberna, o Marmieládov, o qual inicia uma conversa com Raskólnikov e, entre diálogos que os fazem percorrer em assuntos como empréstimo de dinheiro, esse senhor disse:
– Isso mesmo, sem qualquer esperança, sabendo de antemão que nada vai conseguir. Você sabe, por exemplo, de antemão e em detalhes que essa pessoa, o mais bem-intencionado e mais útil dos cidadãos, não lhe vai emprestar de jeito nenhum, pois, pergunto eu, por que iria emprestar? Ora, já sabe que eu não vou pagar. Por compaixão? Mas o senhor Liebeziátnikov, em dia com as novas idéias, explicou há pouco que a compaixão em nossa época está proibida até pela ciência e que já é assim que se procede na Inglaterra, onde existe a economia política. Por que, pergunto eu, emprestaria? Pois bem, mesmo sabendo de antemão que não vai emprestar, ainda assim você se põe a cominho… (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 31).
Nessa própria obra de Dostoiévski vemos que com o advento do capitalismo, a compaixão não pode ser mais aceita, é o que percebemos nesse diálogo entre esse senhor e Raskólnikov. Um outro exemplo dado pode ser encontrado ainda nessa conversação, que reforça o que foi dito sobre a compaixão: “a economia política da Inglaterra não aceita a compaixão” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 31). Esse diálogo também parece caracterizar aquela velha agiota, que explora Raskólnikov. Ela, metaforicamente, pode ser a face da injustiça social que assalta a Rússia pré-capitalista na metade do século XIX.
Essa referência à Inglaterra, nessa conversa do personagem Marmieládov com Raskólnikov, é importante, porque, historicamente, a partir de seu nascedouro na Inglaterra, o capitalismo se espalhou pelo mundo eliminando todos os demais modos de produção (DEÁK, 2013).
Mas, apesar de a Rússia estar presente na Europa, a sociedade russa ainda era semi-feudal e o choque do capitalismo ainda estava se tornando atual. As obras de Dostoiévski retratam uma sociedade imponente, que segue as regras do capitalismo que venceu a “mãe Rússia”. A obra Crime e castigo eclode em reação à chegada do capitalismo ao seio de uma sociedade russa à beira da impulsão.
Outra questão que entra em jogo no diálogo do personagem Marmieládov é que, ainda, a compaixão é proibida até pela ciência. Percebemos aí o racionalismo se tornando presente e consequentemente o Iluminismo se apresentando na Rússia. A ideia é que a compaixão se afasta da ciência, onde esta procurava ser neutra e impessoal. A razão (ciência) era, portanto, o único guia da sabedoria capaz de esclarecer qualquer problema, “assim a ciência se destacaria como detentora e promotora da construção dos saberes” (MELLO; DONATO, 2011, p. 263).
Como conseqüência disso, ou seja, da ciência como uma verdade, também possibilitou ao homem a compreensão e o domínio da natureza (BASSANI; VAZ, 2011). Isso é resultado também do antropocentrismo e do individualismo renascentistas, que incentivaram a investigação científica, que levaram à gradativa separação entre o campo da fé (religião) e o da razão (ciência), determinando profundas transformações no modo de pensar, sentir e agir do homem (CENCI; ROESLER; PROSSER, 2013).
Lembramos também que “o Iluminismo encontrou maior força e recepção aos seus princípios na França – palco de problemas econômicos, religiosos, políticos e sociais –, onde influenciaria sobremaneira a Revolução Francesa […]” (MELLO; DONATO, 2011).
John Locke, Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Denis Diderot: livres pensadores iluministas
Portanto, se a inspiração do Iluminismo proveio, em parte, do racionalismo de Descartes, Spinoza e Hobbes, sendo que os verdadeiros inspiradores do movimento foram Newton e Locke (ITUASSU, 2002), e que por sua vez o Iluminismo influenciou a Revolução Francesa (MELLO; DONATO, 2011), tendo como conseqüência uma forma de ciência, que surge como suporte desse processo de racionalização, fornecendo ao pensamento elementos de segurança calcados em valores baseados na abstração, como disseram Mello e Donato (2011), ao se referirem que os paradigmas consolidados em um segundo momento da história, entre os séculos XVII e XVIII, no saber científico, foi consolidada pela Revolução Francesa, demonstrando que o pré-capitalismo determinou a função sobre a ciência (a tentativa de dominar a natureza / a matéria prima / a Revolução Industrial ocorrendo antes e quase que paralelamente a Francesa).
A Revolução Francesa, em síntese, através da Constituição de 1791, estabeleceu na França as linhas gerais para o surgimento de uma sociedade burguesa e capitalista em lugar da anterior, feudal e aristocrática. Apesar disso, este projeto não teve muita sustentação, logo de início.
De qualquer forma, foi no século XIX, quando Dostoiévski vivia e escrevia muito, que o Capitalismo criou força. O capitalismo se tornou dominante no mundo ocidental depois da queda do feudalismo e gradualmente se espalhou pela Europa e, nos séculos XIX e XX, forneceu o principal meio de industrialização na maior parte do mundo.
Devido a burguesia da época e o que viria a ser o liberalismo, de certa forma, se apresentando aos poucos, Dostoiévski, em sua obra Crime e Castigo, ainda na sua primeira parte (a obra é divida em seis partes e um epílogo), no diálogo entre os personagens Marmieládov e Raskólnikov, tenta expor que o Capitalismo, ainda não nomeado assim, é desumano devido a falta de compaixão e a exploração do ser humano pelo ser humano.
Raskólnikov na cena do filme “Crime e castigo” produzido pela BBC
Esse juízo de fatos históricos, que desenvolvemos aqui, se voltando à obra Crime e Castigo, se faz necessário para poder entendermos essa literatura de Dostoiévski, já que os trabalhos desse escritor, apesar de tantas interpretações, exigem do leitor praticamente tanta garra e tanta erudição quanto demonstra ter o próprio autor, ou seja, exige um conhecimento amplo da história do pensamento filosófico.
Um dos entendimentos sobre Raskólnikov, personagem principal da obra, parece ser a representação do seu dilema social de sua época: da crise e da contradição de seu povo com a chegada do Capitalismo que contraria a visão Socialista Utópica. Dostoiévski freqüentou o círculo Petrachévski, nome de um grupo secreto de socialistas utópicos (DOSTOIÉVSKI, 2001). Outra questão presente é a visão do racionalismo que vai de contra aos princípios do Cristianismo russo etc.
Assim, Raskólnikov representa a gradativa separação entre o campo da fé (religião) e o da razão (ciência), determinando profundas transformações no modo de pensar, sentir e agir do homem. Percebemos melhor esse modo quando Raskólnikov encontra uma moça bêbada, deitada em um banco na rua, e assim, com um espírito altruísta, mesmo sem conhecê-la, resolve socorrê-la e até pedir ajuda a um policial bigodudo que, além de pedir que a levasse para casa dela com segurança, a protegesse também de outro senhor que a seguia para abusá-la, o qual, este, tentava aproveitar da má condição física e psíquica da moça. Este senhor, que tentava abusar a moça, foi até nomeado pejorativamente de almofadinha, por Raskólnikov.
Raskólnikov se preocupou tanto com a tal moça que ofereceu dinheiro ao policial para que este pudesse custear o transporte dela com a finalidade de ajudá-la. Mas, contraditoriamente, no decorrer, Raskólnikov mudou de opinião subitamente e assim pediu para que o policial a deixasse em paz, dizendo que ninguém teria nada a ver com isso e que o tal senhor almofadinha poderia sim se divertir com ela; também, depois, sozinho, ele reclamou para si mesmo o dinheiro que ofereceu ao policial, afirmando que se nem tinha condições para se manter como iria ajudar alguém? Segue um dos trechos que permite evidenciar isso no romance:
[…] – Ouça – disse Raskólnikov –, veja (remexeu num bolso e tirou vinte copeques), tome, chame um cocheiro e mande deixa-la no endereço. Só falta a gente descobrir o endereço! […] Num instante alguma coisa pareceu picar Raskólnikov; num abrir e fechar de olhos ficou meio transtornado. – Ei, esculte! – gritou atrás do bigodudo O outro olhou para trás. – Deixe pra lá! O que o senhor tem com isso? Deixe que ele se divirta (apontou para o almofadinha). O que é que o senhor tem com isso? O policial não entendeu e ficou olhando para Raskólnikov de olhos arregalados. Raskólnikov começou a rir. […] Levou meus vinte copeques – pronunciou com raiva Raskólnikov, depois de ficar só. – Deixa para lá, vai pegar dinheiro de outro também e ainda deixar a menina, é assim que vai terminar… por que eu me meti a ajudar? Eu mesmo não estou precisando de ajuda? Tenho eu direito de ajudar? Que eles se engulam vivos – o que é que eu tenho com isso? E como me atrevi a dar aqueles vinte copeques? Por acaso eram meus? (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 65).
Claramente percebemos a contradição do comportamento nesse trecho, onde Raskólnikov em um dado momento era solidário e, logo em seguida, se torna imediatamente em um ser individualista e fechado à compaixão.
Lembramos que o individualismo também foi um dos valores renascentistas e refletiu a emergência da burguesia e de novas relações de trabalho, que era a idéia de que cada um é responsável pela condução de sua vida, portanto a possibilidade de fazer opções e de manifestar-se sobre diversos assuntos acentuaram gradualmente o individualismo (FERNANDES, 2013).
E a compaixão, como foi dita anteriormente aqui, não faz mais parte da nova economia capitalista da Inglaterra, que dominava a Europa, e nem da ciência. O problema disso tudo não era só a questão do individualismo e outras características renascentistas, mas em que situação isso poderia chegar, levando ao um extremismo Niilista, por exemplo. Os efeitos desse fenômeno são visualizados por Dostoiévski.
Esclarecendo que a questão aqui, para Dostoiévski, não é ser necessariamente contra a ciência em si, mas sim como ela era conduzida pelo modelo capitalista e como ela era endeusada, sendo uma verdade absoluta.
Podemos também fazer uma relação da obra Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, com a obra Crime e Castigo, pois, segundo Paulo Bezerra, tradutor dos trabalhos de Dostoiévski:
o paradoxalista de Memórias… afirma que os homens de nervos fortes, de ação, isto é, os homens guiados pela razão, os homens da civilização burguesa, param diante do impossível, de um limite, e imediatamente se conformam. Esse limite é um muro de pedras, ‘naturalmente as leis da natureza, as conclusões das ciências naturais, a matemática (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 11).
Essa afirmação, de um personagem paradoxalista em Memórias do Subsolo, é logo evidente também quando continuamos ainda dentro do contexto do trecho da obra Crime e Castigo, em que conta a história da moça bêbada, citada anteriormente aqui, na qual ora Raskólnikov age de forma altruísta, ora ele age de forma egoísta, quase que ao mesmo tempo, com gestos confusos. Para fortalecer esse paradoxo no personagem, que era o retrato social russo da época (de um lado o semi-feudalismo e toda sua cultura cristã russa, e do outro lado o capitalismo), como que numa espécie de vai e vem ou em crise emocional ou em surto de loucura, sempre contraditório e em conflito, Raskólnikov sai de sua visão individualista ou egoísta e entra novamente numa visão mais altruísta e, assim, comenta:
“Pobre menina!… – disse ele, olhando para o canto vazio do banco. – Vai voltar a si, chorar, depois a mãe ficará sabendo de tudo… Primeiro irá espancá-la, depois açoitá-la, para doer e envergonhar, pode ser até que a expulse de casa… Mas se não expulsar, as Dárias Frantsievnas acabarão farejando e a minha menina começará a correr pra lá e pra cá… Depois logo irá bater com os costados num hospital […] e depois… depois novamente hospital… vinho… botecos… e de novo hospital… dois, três, anos depois estará mutilada, aos dezoito ou dezenove anos de vida apenas… Por acaso não conheço moças assim? E como chegaram aí? Foi assim que chegaram… Arre! Que seja! É assim, dizem, que tem que ser. Essa tal porcentagem, dizem, deve ir todo ano… para algum lugar… para o diabo, deve ser, para revigorar as demais e não lhes atrapalhar. Porcentagem! Excelentes, verdade, essas palavrinhas deles: são tão tranqüilizantes, científicas! Foi dito: porcentagem – logo, não há motivo para inquietação. Mas se empregassem outra palavra, aí… talvez fosse mais inquietante…” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 66).
Nesse momento, percebemos também o discurso de Raskólnikov que diz que o homem se conforma com as misérias, no caso, com as moças mutiladas, só porque cientificamente são explicadas e, assim, aceitas como uma resposta quase que de uma verdade absoluta em sua época. Essa tal porcentagem que o personagem se refere pode ser entendido segundo o:
“[…] raciocínio sobre o permanente ‘percentual’ de vítimas condenadas inevitavelmente pela natureza ao crime e à prostituição apareciam nos jornais e revistas russos entre 1865 e 1866 em face da publicação, em língua russa, do livro O homem e o desenvolvimento das faculdades… do famoso matemático belga, economista e ‘pai da estatística’ Lambert Adolf Quétele. O economista alemão A. Wagner, um dos divulgadores de Quételet, é mencionado por Dostoiévski no romance. Naquele momento, a imprensa russa proclamava Quételet e Wagner os pilares da ‘ciência da estatística ética’”. (N. da E.) (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 66).
Novamente se percebe o ataque ao surgimento do Renascimento, na época, que proporciona o desenvolvimento do racionalismo como a explicação do mundo através de verdades absolutas (se não absolutas, as únicas mais confiáveis) estabelecidas pela razão.
Só que Dostoiévski, através do seu personagem Raskólnikov, pontua mil vezes a não-razão, é a crise da razão, já que, para o autor, a razão é só uma fração do homem, que satisfaz somente a parte racional humana, enquanto o ato de viver em toda a sua expressão vai além do racional. Mesmo que essa expressão resulte, às vezes, em algo bizarro, no entanto, ali será sempre uma vida expressa e não um cálculo matemático. Na matemática, dois mais dois são quatro. No homem, dois mais dois são cinco, seis, sete… (DOSTOIÉVSKI, 2000).
Freud também, posteriormente, fez desmoronar a ideia de um homem determinado pela primazia da razão. Desde os momentos finais do século XIX, o Eu, a sede da consciência, deixou de ser o senhor em sua própria casa.
O que vamos conhecendo nessa obra é que, para Dostoiévski, o homem é um ser complexo e por isso desdenha desse modelo de homem guiado pela razão.
Outro ponto que precisa ser abordado na obra é que o crime de Raskólnikov, em outras passagens do romance, quando ele mata a velha agiota, vai além das aparências de problemas financeiros. É certo que a Rússia que Dostoiévski sentiu e pintou tão espantosamente, é um fantasma gerado pelo homem errante e renegado. Nesse período, final do Século XIX, “a Rússia vivia uma das piores crises econômicas de toda a sua história. O atraso econômico e cultural do país e as péssimas condições de vida dos camponeses e operários […] eram a marca da época” (SACHS, 2011, p. 14).
E, como foi dito, nesse contexto histórico, a velha agiota Alena Ivanovna podia entregar-se livremente à exploração de desgraçados como o estudante Raskólnikov. Assim, porque não eliminar a velha agiota, aquele ser parasitário, inútil, e utilizar-se do seu dinheiro para sair daquela situação incomoda, salvando também sua mãe e sua irmã, reduzidas à miséria? Seria esse um dos pensamentos do Raskólnikov.
Ilustração mostrando o crime de Raskólnikov contra a velha agiota Alena Ivanovna
Foi nessas circunstâncias terríveis que o jovem estudante desenvolveu sua doutrina do “direito ao crime”, na qual todo aquele que se sente além das convenções tradicionais acerca do bem e do mal , tem direito a tudo, inclusive o direito de eliminar os que consideram prejudiciais ao seu objetivo (visão do niilismo predominante na época da Rússia de Dostoiévski).
Mas, dessa forma, se engana quem pensa que Raskólnikov cometerá um duplo crime devido somente a sua condição financeira modesta. Realmente esse ato do estudante é um ato de revolta, de rebeldia contra o status quo, porém, sua atitude carrega por trás uma questão muito mais complexa e filosófica. Um desses exemplos filosóficos por de trás das ações de Raskólnikov é o crescimento do Iluminismo, resultado do Racionalismo, com o qual percebe-se que nossa sociedade muito se beneficiou com tais iniciativas, no entanto teve como consequência o relativismo moral, o individualismo, o hedonismo e o consumismo.
Lembrando-se que aqui é a história da Rússia e não de toda a Europa. Os russos viveram o atraso, no que tange se tornarem capitalistas em relação a Europa, e tiveram sintomas muito particulares, embora não tão diferentes de outros países europeus.
Assim, continuando com o personagem Raskólnikov e o caso do assassinato da velha agiota, entra em jogo o relativismo moral e a grande discussão Niilista da época (MAYOS, 2013). Nesse momento percebemos que Dostoiévski não ataca só o capitalismo, mas ainda o socialismo. Assim como o homem do Memórias do Subsolo, ataca tudo e todos sem distinções. Como também afirmou Paulo Bezerra, professor, ensaísta e tradutor das obras de Dostoiévski:
Apesar do anticapitalismo arraigado de Crime e Castigo, não vamos promover Dostoiévski à categoria de revolucionário. A própria teoria do crime permitido, desenvolvida por Raskolnikov, é também uma polêmica com as tendências político-ideológicas de cunho revolucionário… (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 21)
Dostoiévski foi detido e preso em 23 de abril de 1849 por participar de um grupo intelectual revolucionário chamado Círculo Petrashevski. Depois da saída da prisão, o escritor russo teve uma nova concepção de mundo e Crime e Castigo foi escrito cinco anos após Dostoiévski ter voltado do exílio siberiano (1850-1860).
Na Rússia, o niilismo, que inspira também o crime de Raskolnikov, vai para o plano social e político e passa a designar um movimento de rebelião contra a ordem estabelecida, o atraso da sociedade e os seus valores (PECORARO, 2010). Assim, Dostoiévski presenciou movimentos socialistas e anarquistas que promoveram atentados terroristas e assassinatos políticos na Rússia czarista, que foram denominados de Niilistas, e que é bem descritos na obra Os Demônios, de Dostoiévski.
Mas toda a crítica de Crime e Castigo ao racionalismo e suas “vertentes”, como o Iluminismo, o Niilismo, a Revolução Francesa etc., tem como pano de fundo a civilização burguesa oriunda desses movimentos que
“[…] incorporou os piores exemplos de violência da história e na qual o homem ‘talvez chegue ao ponto de encontrar prazer em derramar sangue, ‘os mais refinados sanguinários foram todos cavalheiros civilizados’ e ‘são encontrados com demasiada frequência, são por demais comuns, e já não chamam atenção’ porque seus atos sanguinários já viraram hábito, isto é, passaram a integrar a própria civilização. Essas reflexões estão em profunda sintonia com a análise que Raskólnikov faz da história e com sua teoria do crime permitido.” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 11).
Raskólnikov, então, cria a teoria do homem “ordinário” e “extraordinário”, que tem origem nos grandes criminosos da história. O protótipo do homem extraordinário de Raskólnikov era justamente Napoleão, um conquistador que não hesitava em pisar em quantas cabeças fosse preciso.
“O substrato da reflexão de Raskólnikov é o seguinte: Napoleão derramou rios de sangue para consolidar a civilização burguesa, que tem em sua macroestrutura o sistema bancário como símbolo maior, e a história o absolveu. Então, por que eu, Radion Románovitch Raskólnikov, não posso matar uma mísera velha agiota, que repete na microestrutura da sociedade o que o sistema bancário faz na macroestrutura?” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 12).
Assim, toda essa ideologia de Raskólnikov antecede mais uma discussão filosófica: os valores humanos do nosso tempo. O personagem, do escritor Dostoiévski, antecipa as discussões como as tratadas pelo filósofo e sociólogo Theodor Adorno, da Escola de Frankfurt, no que tange ao embrutecimento das relações humanas.
Antecipa também as reflexões sobre a sociedade atual do sociólogo Zygmunt Bauman, em suas famosas obras Tempos Líquidos (Editora Zahar) e Amor Liquido (Editora Zahar), que são as fragilidades dos laços humanos, de que forma as relações parecem tornar-se cada vez mais ‘flexíveis’, gerando níveis de insegurança maiores, afetando negativamente não só os laços familiares e amorosos, como também a capacidade de tratar um estranho com humanidade.
Ou seja, terrorismo, desemprego, solidão – fenômenos típicos de uma era na qual, para Bauman, a exclusão e a desintegração da solidariedade expõem o ser humano aos seus temores mais graves, os personagens dostoievskianos já previam.
Essa questão é discutida também em a razão subjetiva, formal e instrumental, que se encontra na obra Eclipse da Razão, do filósofo Horkheimer.
Além disso, a temática do cristianismo e do amor também se apresenta na obra Crime e Castigo de Dostoiévski, ela é também essencial para compreensão do romance. Ou seja, essa obra não se resume a problemas filosóficos e políticos, mas também religiosos, no termo mais convencional da palavra. O amor é representado pela personagem Sônia, a paixão de Raskólnikov. Temos, de um lado, a ética do amor cristão, o sacrifício total, imediato e incondicional do Eu que é a lei da existência de Sônia; e, de outro, a ética utilitarista racional de Raskólnikov, que justifica o sacrifício dos outros em nome do bem social comum, mas que depois o próprio Raskólnikov será uma espécie de redenção cristã. Evito aqui mais detalhes sobre ele, nessa fase do personagem, pois, uma vez que as histórias estão interligadas, pode gerar spoiler (JOSEPH, 2003).
Mas, não vamos confundir o cristianismo de Dostoiévski com o nosso cristianismo. Ele era um crítico do nosso cristianismo ocidental. Ou seja, como se sabe, há uma grande diferença entre a visão de cristianismo, entre a igreja ocidental (latina) e a oriental, segundo o teólogo russo Evdokimov. Por isso, o cristianismo, que é na verdade a mística ortodoxa, pulsa fortemente na Rússia de Dostoiévski e está presente em sua literatura. Dessa forma, é importante termos uma compreensão da mística ortodoxa para a análise do pensamento religioso de Dostoiévski e dessa influência religiosa em seus escritos (PAULINO, 2012). O que não será possível aqui.
Só assim, entende-se que não daremos conta da obra desse grande escritor russo e, como foi dito anteriormente, por isso, e já que é um Portal da internet, não permite nos aprofundar muito sobre. Contudo, sentimos a complexidade da obra Crime e Castigo, pelo menos.
Percebe-se que passamos, mesmo que superficialmente, por vários temas, ao comentarmos da obra Crime e Castigo de Dostoiévski. Percebendo também a complexidade filosófica que se encontra nela. É sabido que muitos a ver ou como um romance policial ou uma obra de visão filosófica, mas com um tema único. Grande engano, pois em termos de valor esse romance enfatiza vários temas num mesmo enredo (polenfático).
Há diversas ideias complexas, que vão tornando-se mais significativas juntamente com o desenvolvimento do enredo do próprio romance. Não diferente de outras obras de Dostoiévski, Crime e Castigo envolve muitos temas que vão da psicologia, filosofia, política à religião. Suas obras são um manancial de reflexão filosófica atemporal e com Crime e Castigo não é diferente.
Enfim, como disse Paulo Bezerra, Dostoiévski foi um riquíssimo e complexo produto de sua época. Aliás, ele mesmo se autodefine em carta enviada à sua amiga N.D. Fonvízina, escrita em fevereiro de 1854: “Eu sou um filho do século, filho da descrença e da dúvida; assim tenho sido até hoje e o serei até o fim dos meus dias. Que tormentos terríveis tem me custado essa sede de crer, que é tão mais forte em minha alma quanto maiores são os argumentos contrários”.
REFERÊNCIAS
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CENCI, R. D; ROELSER, A. D; PROSSER. S. E. A crise da modernidade e a ética da vida na relação home-natureza. FAE Centro Universitário.Disponível em:< http://www.unifae.br/publicacoes/pdf/sustentabilidade/acrisedamodernidade.pdf> Acesso em: 27 julho 2013).
DEÁK, C. (Versão preliminar 4.9.11. Rev. 5.5.24; 7.9.30; 10.5.5. Capitalismo. USP. Disponível em:<http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/4verb/capitalism/index.html > Acesso em: 26 julho 2013).
DOSTOIÉVSKI, M. F. Crime e Castigo. Tradução: Paulo Bezerra. 3ª ed. São Paulo: Editora 34, 2001.
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FREUD, S. Writings on Art and Literature. ISBN: 9780804729727. Series: Meridian: Crossing Aesthetics. Stanford University Press, 1997.
FERNANDES, T. A. Individualismo, Subjectividade e Relação social. Universidade do Porto. Disponível em:< http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/1681.pdf> Acesso em: 27 julho 2013).
ITUASSU, A. Rousseau, Sturm und Drang, civilização e barbárie: representação do embate entre culturas e a atualidade das discussões acerca do Iluminismo francês. PUC. ALCEU – v.2 – n.4 – p. 173 a 190 – jan./jun. 2002.
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