Reinações de Narizinho, obra-prima de Monteiro Lobato, é atual e atemporal, tanto esteticamente quanto artisticamente

Neste livro, forma-se todo o núcleo de personagens de várias das histórias de Lobato. Firma-se um conjunto central de personagens, a saber: Dona Benta, Narizinho, Tia Nastácia, Emília, Rabicó, Pedrinho e Visconde de Sabugosa. Além disso, estabelece-se um espelho, que é o Sítio do Picapau Amarelo, local onde todos os personagens vivem suas aventuras. É no Sítio que os personagens, sobretudo Narizinho e Emília, vivem experiências extraordinárias, movidas pelo desejo de viver, os acontecimentos transitam entre o mundo real das personagens e a fantasia; nesse sítio, tudo é possível, tudo é natural e os sonhos são vividos de fato, e não apenas sonhados – isto sem muitas delongas e explicações. Através de Reinações, Monteiro Lobato resgata parte do patrimônio cultural de todos nós. Através de intertextualidades, o escritor possibilita ao leitor o encontro com inúmeros personagens da ficção universal. Personagens como a Dona Carochinha, Pequeno Polegar, Pinóquio, Gato Félix e Peter Pan são alguns que passam pelo Sítio do Picapau Amarelo.
Esta leitura de Reinações de Narizinho mantém seu foco nas seguintes questões: o narrador; o foco narrativo; as noções de tempo; a função do espaço na narrativa; os personagens, bem como suas funções na obra; intertextos, isto é, elementos de outras narrativas; a modernidade de Lobato; e, além disso, como a criança, através da obra lobatiana, pergunta e recebe informações que a instrumentam para crítica e como vê criticamente aspectos reais, os quais têm como característica a falta de limites com acontecimentos irreais.
Questões estéticas e temáticas em Reinações de Narizinho
Lançada em 1931, Reinações de Narizinho é a obra inaugural da coleção das obras completas de Monteiro Lobato para a infância. O espaço fixado é o Sítio do Picapau Amarelo, local onde parte do elenco figura e vive. Nesta obra, Lobato estabiliza os personagens centrais de todas as suas histórias. São eles: Narizinho, Dona Benta, Tia Anastácia, Pedrinho, Emília (a boneca), Visconde de Sabugosa (o sabugo de milho) e Rabicó (o porco). Nesta obra, há ainda os seres aquáticos que aparecem eventualmente: os habitantes do Reino das Águas Claras, que ficam nas cercanias do sítio, e há também outros visitantes, menos frequentes, como Peninha, Gato Félix e o Pequeno Polegar.
O narrador da história narra em 3ª pessoa e é onisciente, isto é, ele conhece tudo sobre os personagens e sobre o enredo, sabe o que passa no íntimo das personagens, conhece suas emoções e pensamentos. Zilberman (1982), escritora e professora brasileira, em sua obra Literatura infantil: autoritarismo e emancipação, declara que o narrador pode ser emancipador ou autoritário. O narrador autoritário, que é um adulto, é aquele que hostiliza a criança e dá a narrativa um tom moralizador; o emancipador, por sua vez, é perceptível pela condução da liberdade da criança.
Lobato, que abre um período na nova literatura brasileira para crianças, ainda colocou em Reinações de Narizinho um narrador emancipador. E como isso se dá? A emancipação, no caso, dá-se pela condução da liberdade dada por este narrador (adulto). Este modelo emancipador proposto por Lobato, segundo Febal e Montoyama (s/ano), criou “um Sítio onde as crianças aprendem a partir de aventuras imaginárias, vivências reais e contação de histórias da avó”. O narrador da obra mistura a fantasia de Narizinho com a realidade dos adultos, por vezes até confundindo os leitores.
Quanto à focalização narrativa, como já mencionada, temos um narrador em 3ª pessoa, um narrador heterodiegético – nomenclatura postulada em Discurso da Narrativa (1972), de Gerard Genette – ou seja, aquele que não fazendo parte da história, a narra. Ele é onisciente, e, embora não seja personagem narrativa, é sob o seu ponto de vista que todos os aspectos do texto são apresentados; emite, ocasionalmente, opinião sobre as personagens, fazendo uso do discurso indireto; conhece, de fato, toda a história, o espaço e os personagens, além de ter ciência até mesmo dos sentimentos deles. Este é, ainda, seletivo múltiplo, ora foca em Narizinho, ora Foca em Emília, ora foca nos demais personagens, como Dona Benta, Anastácia, Pedrinho, Visconde de Sabugosa, etc. Veja a focalização a seguir em Dona Benta:
Dona Benta ouviu a história do passeio ao País das Fábulas com especial interesse para tudo quanto se referia ao senhor de La Fontaine, cujas obras havia lido em Francês. Sempre tivera grande admiração por esse fabulista, que considerava um dos maiores escritores do mundo (LOBATO, 1993, p. 153).
E a seguir, a focalização na boneca Emília: “[…] E Emília? Emília, na varanda, balançava-se numa pequena rede especialmente armada para ela num canto. A boneca estava pensando na vida, com a ideia de virar escritora de histórias” (LOBATO, 1993, p.89).
Vale ainda destacar que, Em Reinações de Narizinho, e na obra infantojuvenil lobatiana num todo, dois níveis distintos são apresentados:
[…] num deles, a criança pergunta e recebe informações que a instrumentam para a crítica; no outro, vê criticamente aspectos reais, os quais têm como característica infantil a absoluta falta de limites com acontecimentos irreais. Tudo é possível. As noções de tempo e de espaço são eliminadas. Tudo é natural, nada é sonho, ou melhor, o próprio sonho é vivido e não sonhado (ZILBERMAN, 1983, p. 104).
A boneca Emília, Narizinho e Pedrinho, como é possível observar no texto, são altamente críticos e curiosos; perguntam, criticam e questionam sobre tudo, querem saber a respeito de cada detalhe. Como no momento em que Dona Benta termina de narrar a fábula A cigarra e a formiga e eles questionam as atitudes dos insetos (o que evidencia o caráter emancipador da narrativa lobatiana). As informações que recebem, as respostas às suas perguntas, instrumentam todos para a crítica. No término da leitura e do “momento de comentários e críticas”, os personagens, com o auxílio do pó de pirlimpimpim, chegam aos pais das fábulas para acompanhar in loco a desenrolar dos fatos da vida da cigarra e das formigas. Desta forma, os três veem criticamente aspectos reais do mundo, que de acordo com a visão infantil, tem absoluta falta de limites com acontecimentos irreais. De um lado, temos Dona Benta lendo a fábula para os netos e a boneca, e o momento de discussões acerca das atitudes dos personagens da fábula; de outro lado, temos as crianças que se deslocam até o mundo das fábulas para modificar as ações das personagens e as questões moralistas colocadas na fábula original por La Fontaine.

A personagem Emília não é criança, mas sim uma boneca, que se mostra independente e dona de seu próprio nariz, é curiosa, fala pelos cotovelos e é bastante crítica. Emília tem certa postura feminista na obra: ”Emília não se mostrava disposta a casar. Dizia sempre que não tinha gênio para aturar marido, além de que não via lá pelo Sítio quem a merecesse” (LOBATO,1993, p.46). Além disso, a boneca substitui a fada nas obras infantis, de acordo com Zilberman: “[…] a fada – personagem que no conto tradicional se distancia do real e é a priori instauradora do maravilhoso – é substituída por Emília, uma boneca de pano tornada viva, próxima da realidade infantil” (1983, p.104). Seguindo este raciocínio é possível afirmar que a boneca é o que se aproxima das crianças e sua realidade, ela é algo, de fato, observável e existente no mundo real, nela há ainda a mágica e o sonho, por ser uma boneca tornada viva, que fala, que tem senso crítico.
Quanto ao senso crítico de Emília, estudiosos afirmam que esta é a própria figura de Monteiro Lobato, seu “criador”. Emília seria o próprio Lobato pela postura eternamente questionadora. A boneca de pano demonstra seu inconformismo com toda a sociedade da época. Lobato tinha uma imensa preocupação com a educação e o caminho pelo qual as crianças e jovens estavam sendo guiados, em sua época havia inúmeros debates sobre reformas educacionais; novas teses pedagógicas e fundamentos teóricos estavam sendo questionados fora do Brasil, mas refletiam em nosso país.
Na literatura infantojuvenil (ou infantil e juvenil como chamam atualmente) do Brasil, coube a Lobato ser uma espécie de divisor de águas que separa o Brasil de passado e o Brasil da atualidade. Fazendo a herança do passado emergir no presente, Lobato encontrou o caminho criador que a literatura infantil estava necessitando: rompe, pela raiz, com as convenções estereotipadas da literatura infantilizada para crianças e abre as portas para as novas ideias e formas que o novo século empunhava. Lobato inova na linguagem, pois desenvolveu uma linguagem para crianças, brasileira e popular, fez uso, também, de neologismos como as palavras: “emilice”, “emilíssima”, “sabuguiano” e “pirlimpimpinesco”. Monteiro Lobato, movido pela indignação social, focado no futuro, renovou a literatura com suas histórias criativas, sua mistura entre o real e o imaginário, além de sua crença total na liberdade, como vemos no Sítio do Picapau Amarelo, o espaço central de Reinações de Narizinho.
Através do Sítio, Lobato nos apresentou um local de liberdade no geral: liberdade para ser, fazer, tomar iniciativas, pensar, imaginar e viver os sonhos. O sítio é um local encantado, onde se mistura o real, o imaginário e a fantasia, e com naturalidade, sem parecer algo forçado. O Sítio é um espaço onde se vive para brincar e aprender; mesmo nas histórias de mais elevada fantasia, há algum ensinamento e aprendizagem, uma forma, acredito, de preocupação com a educação das crianças leitoras, uma preocupação em desenvolvê-las socialmente.
Regina Zilberman postula que:
As noções de tempo e de espaço são eliminadas. Tudo é natural, nada é sonho, ou melhor, o próprio sonho é vivido e não sonhado. Por isso a fada – personagem que no conto tradicional se distancia do real e é a priori instauradora do maravilhoso – é substituída por Emília, uma boneca de pano tornada viva, próxima da realidade infantil. (ZILBERMAN, 1983, p.104)
Conforme declara Zilberman, o sítio é um lugar onde tudo pode acontecer, é mágico, é tomado pela imaginação das crianças. No sítio, tudo é possível, os sonhos podem, sim, serem vivenciados. Emília, Visconde e Rabicó são claros exemplos da mágica do local: a primeira é uma boneca, que depois de tomar uma pílula falante de um médico chamado Dr. Caramujo, que mora no Reino das Águas Claras, fala e fala muito, tem visão crítica e comenta sobre tudo; o segundo é era um sabugo de milho que ganhou vida ao tornar-se um suposto pai, por assim dizer, de Rabicó; Rabicó é um porco falante de estimação de Narizinho, esta o transforma em Marquês para casá-lo com a sua boneca Emília.

Em Literatura Infantil Brasileira: Histórias e Histórias (2007), Zilberman e Lajolo apontam, ainda, que o sítio não representa apenas um espaço irreal, não é apenas o cenário onde a ação transcorre: “Ele representa igualmente uma concepção a respeito do mundo e da sociedade, bem como uma tomada de posição a propósito da criação de obras para a infância” (p. 54). Esta representação, de acordo com as escritoras, corporifica “no sítio um projeto estético envolvendo a literatura infantil e uma aspiração política envolvendo o Brasil — e não apenas a reprodução da sociedade rural brasileira” (p.54).
Quanto à obra, ainda é importante atentar para os elementos de outras narrativas que Lobato traz à sua narrativa, como Dona Carochinha, Pequeno Polegar, Pinóquio, Gato Félix e Peter Pan, evocando o intertexto, isto é, uma espécie de conversa entre textos, o que possibilita ao leitor o encontro com inúmeros personagens da ficção universal.
É possível observar esta questão no primeiro momento em que Narizinho e Emília estão no rio do Sítio, mais especificamente no Reino das Águas Claras, do príncipe Peixe Escamado. No palácio do reino, começa uma audiência em que surge “uma baratinha de mantilha” (LOBATO, 1993, p. 10), esta baratinha é a célebre Dona Carochinha das histórias famosas, ela se queixa da fuga do Pequeno Polegar do livro a qual ele pertence, depois diz ao príncipe, e também a Narizinho que está presente, que, além do Polegar, outros personagens de suas histórias andam aborrecidos de viverem da forma como estão, naquela normalidade de sempre. Veja o trecho a seguir:
— Por que ele fugiu? — indagou a menina.
— Não sei — respondeu dona Carochinha — mas tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda vida dentro delas. Querem novidade. Falam em correr o mundo a fim de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o Marquês de Carabás e quer ir para os Estados Unidos […]” (LOBATO, 1993, p. 11).
Na parte do livro intitulada Aventuras do Príncipe, surge o Gato Félix no Sítio do Picapau Amarelo. Como o próprio declara a Emília e Narizinho, está à procura de novos ratos:
O gato saiu da moita, vindo com toda a sem-cerimônia sentar-se no colo dela. Narizinho alisou-lhe o pelo e indagou:
— Como é que anda por aqui, Félix? Pensei que morasse nos Estados Unidos.
— Ando viajando — respondeu ele. Estou correndo o mundo para fazer um estudo sobre ratos. Quero saber qual o país de ratos mais gostosos. Até no fundo do mar já estive, onde me empreguei numa corte muito bonita de um tal de príncipe Escamado (LOBATO, 1993, p. 67).
Estes intertextos afirmam ainda mais que O Sítio do Picapau Amarelo é um local onde tudo é possível, tudo que é sonho é vivido naturalmente. E Lobato, ao trazer esses elementos, distancia-se do mundo real e instaura o maravilhoso e o fantástico em sua obra. O autor rompe com a tradição, até então existente no Brasil, que era a importação da literatura europeia, pois, ao colocar personagens de outras narrativas em Reinações, como os personagens dos contos fadas europeus, nacionaliza-os; também adapta de sua maneira as fábulas “emboloradas”, com certo tom humorístico e irreverência.
Por haver todo esse universo infantil é de se pensar: qual a função dos personagens adultos, Dona Benta e Tia Anastácia, na trama? Dona Benta é a avó que ama os netos, mima-os e raramente os repreende, quando faz isso é de modo suave; além disso, é a administradora da propriedade, isto é, o Sítio do Picapau Amarelo. Conforme Escosteguy (2010), a avó acompanha as crianças, D. Benta é “paciente e muito sábia, que, com o passar dos tempos vai tornando-se mais bondosa e carinhosa. Acompanha passo a passo as fantasias dos netos e permite-se viajar pelo país da fantasia e do faz-de-conta” (s/página). Isto é visível quando Dona Benta, instigada por Pedrinho, é tomada pela ideia de conhecer o senhor de La Fontaine: “— Vou menino, vou! — disse ela afinal. Mas pelo amor de Deus não me atropele mais” (LOBATO,1993, p.154). A avó entra no mundo de fantasias das crianças e vai ao País das Fábulas. A avó não quebra o mundo mágico das crianças, permite-os vivenciar seus sonhos sem repreendê-los ou julgá-los.
Tia Nastácia, a negra empregada, chamada de “nega beiçuda”, é responsável pelas tarefas da casa e, sobretudo, por fazer os bolinhos de chuva e tentar assar Rabicó, a mando de Dona Benta. Ainda de acordo com Escosteguy (2010), “Tia Anastácia é sempre boa, é toda trabalho, aliás, é a única pessoa que realmente trabalha. É também vista como medrosa, supersticiosa”, além disso, entre os personagens, ela “é a mais criativa, já que foi ela quem fez Emília e o Visconde de Sabugosa” (sem pág.). Portanto, a negra contribui por esse “mundo mágico” ambientado no Sítio do Picapau Amarelo, é de suas mãos que nascem e que ganham vida a boneca e o sabugo.
Vale ressaltar ainda o personagem Visconde, o sabugo sábio. Ele foi criado pelas mãos de Tia Anastácia; representa, juntamente com Emília, o irreal, a mágica e a fantasia, ou melhor: representa o “tudo é possível no Sítio do Picapau Amarelo”. Visconde adora ler os livros de Dona Benta, certa vez ficou caído atrás de sua estante e leu de tudo. Adora saber os nomes científicos de todos os animais, veja a seguir: “— O Senhor Caramujo é um molusco gastrópode do gênero Líparis” (LOBATO,1947, p.58).
Lobato é atual, é atemporal. Sua atualidade se dá pela carga imaginativa de sua obra; a linguagem altamente inventiva e criativa; o humor; o respeito pelo mundo da criança; a abordagem de questões nacionais de maneira crítica; diálogo com tradições literárias como os contos de fadas. Por estas questões, qualidades estéticas e artísticas, o escritor influenciou e ainda influência inúmeros escritores.
Referências
ESCOSTEGUY, Cléa Coitinho. Leitura de Monteiro Lobato. Anais do Congresso Internacional de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil, do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-RS, 2010. Disponível em <http://www.pucrs.br/edipucrs/CILLIJ/praticas/Literatura_de_Monteiro_Lobato.pdf> Acesso em 26 de set. 2014.
FEBAL, Berta Lúcia Tagliari; MOTOYAMA, Juliane Francischeti Martins. Uma leitura da posição do adulto em Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, e As aventuras do Avião Vermelho, de Érico Veríssimo. Revista de Letras da UTFPR. Disponível em: <http://www.dacex.ct.utfpr.edu.br/161%20Berta%20L%C3%BAcia%20Tagliari%20Feba%20.pdf> Acesso em 26 de set. 2014.
FILIPOUSK, Ana Maria R. Monteiro Lobato e a literatura brasileira contemporânea. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Atualidade de Monteiro Lobato. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 3.ed. São Paulo: Ática, 1982.
ZILBERMAN, Regina; LAJOLO, Marisa. Literatura Infantil Brasileira: Histórias e Histórias. São Paulo: Editora Ática, 2007.