‘A Relíquia’ de Eça de Queirós – Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diáfano da Fantasia

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Em A relíquia, Eça traça uma crítica à religião e aos seus mitos – como a crucificação de Cristo

eca_de_queirozHá um trecho de as Cidades e as Serras (1901) de Eça de Queirós (1845-1900) que constantemente faz cócegas em minhas lembranças de leitor. Lembro do trecho como de um filme cujas imagens eu mesmo selecionei a partir da leitura. Fico a lembrar do seguinte: Jacinto está vistoriando seus projetos de modernização no Douro e deseja que as janelas das casas tenham vidraças, porém o mestre de obras o alerta que após habitadas esses vidros não resistiriam aos costumes da serra. Penso agora, que isso se deve ao fato de que essa partícula do texto contém em alguma medida a significação maior do livro: o conflito de Jacinto entre a Cidade- civilização- e as Serras- a natureza.

No caso de A relíquia, objeto desta resenha, a imagem que me toma é de uma estatueta de Cristo que se desprende do pedestal, ganhando vida e acusando o infame protagonista dessa narrativa, Teodorico Raposo, do pior dos pecados: a Hipocrisia. Acredito que esse trecho também seja o guardião do sentido maior do texto. Vejamos se minha memória é boa intérprete.

A relíquia foi editado pela primeira vez em 1887 quando o autor já estava em sua maturidade. Posterior às obras conhecidas do público brasileiro como Primo Basílio (1878), O mandarim (1880) e quase contemporâneo aos Maias (1888) revela, ao menos para mim, um Eça de Queirós totalmente novo.

Primeiramente, é dotado de um enredo divertidíssimo que por si só seria uma boa novela ou um filme blockbuster. Teodorico Raposo é um jovem egresso da Faculdade de Direito de Coimbra que retorna à Lisboa para viver com sua rica e carola tia Patrocínio. Conhecido entre os amigos como Raposão continua a viver na capital portuguesa como vivia em Coimbra: entre os bares e os prostíbulos. Para garantir o respeito de sua Titi que sustentava o sobrinho com a fortuna do falecido marido, G. Godinho, Raposo traveste-se no cotidiano como um homem religioso. Frequenta com a mesma assiduidade as missas de domingos como as camas das mulheres da rua da Lama, divulgando as idas à igreja e ocultando seus romances.

“[…] para evitar que me ficasse na roupa ou na pele o delicioso cheiro da Adélia, eu trazia na algibeira bocados soltos de incenso. Antes de galgar a triste escadaria da casa, penetrava sutilmente na cavalariça deserta[…] queimava no tampo de uma barrica vazia um pedaço da devota resina; e ali me demorava, expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris… Depois subia; e tinha a satisfação de ver logo a Titi farejar, regalada:

– Jesus, que rico cheirinho a igreja!

Modesto, e com um suspiro, eu murmurava:

– Sou eu, Titi…” (QUEIRÓS, p. 77)

Esse teatro funciona até quando seus gastos superam as mesadas dadas pela Titi. Somado a isso, sofre de uma decepção amorosa que quase lhe rende um balde de água suja na cabeça. Humilhado, almeja visitar a Paris de Victor Hugo – claro que a Paris do Café de la Paix e não aquelas dos Miseráveis– , no entanto Titi acha a cidade-luz um antro de perdição e jamais lhe daria dinheiro para a viagem. Com o avanço da idade da senhora, e com indicações de que esse daria toda a fortuna de G. Godinho para a Santa Igreja; Raposo decide disputar a herança da velha com o Nosso Senhor Jesus Cristo. Qual seria a solução?

Aconselhado pelo testamenteiro e com a reprovação do ganancioso padre que desejava a fortuna da carola , Raposo empreende uma viagem ao oriente em busca de uma Relíquia que prove seu merecimento. Para tanto, parte para Jerusalém em uma peregrinação cômica que passa tanto pelos lugares santos dos Evangelhos quanto pelos prostíbulos do Cairo. Nesse primeiro trecho da viagem conhece um tal Doutor alemão da Universidade de Bonn chamado Topsius. No prefácio escrito pelo próprio Teodorico Raposo, ele recomenda a leitura do livro de Topsius “Jerusalém passeada e comentada” que teria sido escrito durante essa viagem.

Já na cidade do Cairo, enamora-se por uma senhorita inglesa de nome Mary que vivia da boa vontade de ricos viajantes que a visitavam em sua loja de Luvas e Flores de Cera. Antes de Raposo partir para Jerusalém, ela o presenteia com um item que transformará a narrativa: uma camisola de seda. Teodorico parte então para a Terra Santa e descreve um verdadeiro comércio entorno da peregrinação que já estava lá no final do século XIX e ainda hoje é o ganha pão de muita gente.

Descreve diversas paragens bíblicas, sempre com uma profunda ironia e um aguçado olhas para as misérias humanas, fazendo uma espécie de cartografia realista da Terra Santa. Em dado momento, encontra uma árvore que seu amigo Topsius afirma ser a mesma que foi utilizada para a confecção da coroa de espinhos de Cristos. Assim, auxiliado pelo guia confecciona uma coroa de espinhos – há aí sem dúvida uma forte crítica a todo o comércio relíquias religiosos, bem como ao pacto de crença entre vendedores e compradores – que espera dar a Titi como a Relíquia prometida. Feliz com o resultado de sua peregrinação que supõe encerrada, embriaga-se de champanhe e dorme.

A narrativa então parte para o fantástico. Teodorico  Raposo acorda na Jerusalém bíblica. Descobre-se Teodoricus, um lusitano, que estava viajando à missão por outros territórios romanos. É nessa nova categoria de cidadão romana que viaja pelos territórios dos Evangelhos. Ao longo de mais de cem páginas, somos levados por terras e tempos vizinhos às da vida de Cristo. Assim, Teodoricus vê como a ascensão, julgamento e morte de Jesus foi encarada pelos romanos e pelos Judeus de sua época. Jesus é quase uma entidade distante que Raposo busca, mas não encontra nas suas viagens. A  descrição da crucificação de Cristo e da descrição das dores de outros crucificados é dessacralização de toda a santidade. Eça de Queirós afasta o narrador irônico por um momento para revelar a mudança que, ao menos aparentemente, se operou em Raposo ao ver o Calvário:

“Assim seria, oh dura miséria! Sim! De ora em diante por todos os séculos a vir, iria sempre recomeçando em torno à lenha das fogueiras, sob a frialdade das masmorras, junto às escadas das forcas- este afrontoso escândalo de se juntarem sacerdotes, patrícios, magistrados, doutores e mercadores para matarem ferozmente, no alto de um morro, o justo que, penetrado do esplendor de Deus, ensine a adoração em espírito ou cheio do amor dos homens, proclame o reino da igualdade! “(QUEIRÓS, p.256)

Esse anúncio que vemos no trecho de acima de uma espécie de religião da igualdade e da sacralidade dos homens na Terra não modifica o malandro Raposo. Essa viagem no tempo se encerra e Teodorico, não mais Teodoricus, retorna à Lisboa. Vai em busca daquilo que o fez peregrinar pelo espaço e tempo da Terra Santa: o dinheiro de G. Godinho, guardado pela religiosidade violenta de Titi. Com esse objetivo, entrega uma caixa à D. Patrocínio imaginando que essa contém a coroa de Cristo por ele recolhida. Ledo engano. A caixa contém na verdade aquele presente de Mary: a sedosa camisola, perfumada pela pele da inglesa e com os dizeres em um bilhete: “ao meu portuguesinho valente pelo muito que gozamos”. Essa decepção faz com que Raposo seja deserdado e expulso da casa de Titi.

Amargurado e falido, nosso herói passa a viver em uma modesta pensão. Obtém seus rendimentos com a venda de alguns objetos recolhidos na viagem. Nessa situação de pobreza, briga com a imagem do Cristo e esse acaba se revelando como o elemento central da narrativa:

“Eu não construo os episódios da tua vida; assisto a eles e julgo-os placidamente… Sem que eu me mova, nem intervenha influência sobrenatural […] Eu não sou Jesus de Nazaré nem nenhum outro deus criado pelos homens; sou anterior aos deuses transitórios… Chamo-me a Consciência “( QUEIRÓS, p.335)

A Consciência. Tão somente a Consciência que nos mergulha na culpa ou no prazer de ter feito algo plausível com o que acreditamos. De fato, como lembrava, esse trecho da revelação é aquele que amarra toda a narrativa. A história não se encerra como esperamos, se encerra como a Consciência de Raposão pensa ser a mais adequada, casa-se com a filha de um homem rico e acaba por inclusive ter boas relações com a Igreja.

“Casei. Sou Pai. Tenho carruagem, a consideração do meu bairro, a comenda de Cristo” (QUEIRÓS, p. 340)

A minha leitura foi facilitada pela escolha de uma boa edição. Eu gosto particularmente da edição da Ateliê Editorial. Os comentários e notas de Fernando Marcílio L. Couto ajudam um leitor informal- como eu- a navegar com maior facilidade em uma narrativa cheia de referências bíblicas e mitológicas. Apesar de, na minha opinião, pecar por vezes pelo excesso de interpretação que oferece ao leitor- as notas são uma espécie de misto de glossário e anotações de leitura- a edição é excelente para mergulhar na narrativa.

Toda a obra de Eça de Queirós está em domínio público. Como sugestão, vai o link do Portal Domínio Público, mantido pelo Ministério da Educação- Que Deus o tenha!- e lançado em 2004 (para ter acesso, clique aqui).

Referência

QUEIRÓS, Eça. A Relíquia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

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